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Vergados pelo cansaço de dois dias de combate sem interrupção e por uma tarde sangrenta na arena e no cemitério, Francisco e Juanito caminharam em silêncio e aos tropeções por entre as artérias sujas e os escombros de paredes desabadas, dirigindo-se ao boleto que lhes fora destinado perto da Comandancia.

A luz ténue dos candeeiros desenhava sombras fugidias pelos passeios, banhando as ruas de desgraçada solidão, e as pedras prolongavam com um tilintar metálico e sinistro o som cadenciado dos passos a calcorrearem a noite. Aqui e ali viam-se ainda bombas por explodir, silhuetas tenebrosas que tiveram o cuidado de contornar. Por vezes cruzavam-se com uma ou outra mulher vestida de negro, a dor travada pelo medo, ou com grupos de falangistas ou de requetés que cantavam canções patrióticas. Contudo, em grande parte do trajecto não encontraram vivalma; era como se Badajoz se tivesse transformado numa cidade-fantasma.

De repente, já perto da Comandancia, Francisco sentiu as pernas falharem-lhe e tombou pesadamente no chão.

"O que é esta merda?", interrogou-se, meio atordoado.

Uma dor aguda irrompeu-lhe na anca, como se uma faca tivesse penetrado fundo na carne, e ouviu uma detonação. Com um gemido, desceu o olhar e viu, surpreendido, a farda empapar-se de vermelho. Como se a acção decorresse muito lentamente, observou Juanito erguer a Mauser e disparar para

os telhados. Percebeu então que fora atingido pelo tiro desesperado de um qualquer derradeiro resistente que se posicionara nas redondezas.

Deitado no solo, antes de perder os sentidos, ergueu a cabeça e, juntando as forças que ainda não se tinham esvaído, abraçou o destino com o grito arrebatado dos legionários.

"Viva a morte!"

XIII

Ding-dong.

O toque na campainha arrancou um protesto baixo de Amélia. A dona da casa ultimava nessa altura os preparativos para o almoço e não gostava de visitas àquela hora; eram normalmente oportunistas que se lhe introduziam na sala de jantar sob os mais variados pretextos, fazendo-se convidados para o repasto. Desceu as escadas a resmungar, calculando ser um qualquer camarada de armas do marido, mas, quando abriu a porta, não pôde evitar uma expressão de surpresa ao identificar o visitante.

"Luís! O que estás aqui a fazer?"

"Preciso de falar contigo."

Ele trazia no olhar uma opacidade fatigada que a inquietou. Amélia espreitou para a rua, procurando certificar-se de que não estavam a ser observados, e fez-lhe sinal de que entrasse.

"O Mário deve estar quase a chegar", avisou, fechando a porta. "O que se passa?"

"Fui desmobilizado. No dia um vou deixar a tropa."

"Já no dia um? Mas não é um pouco cedo de mais?"

"Foi uma decisão da pevide." Pevide era a alcunha que a PVDE tinha nas ruas. "Mandaram um inspector falar comigo por causa do que aconteceu em Valença. Se calhar também vão criar problemas ao teu marido."

"Já criaram", revelou ela. "Ele vai passar à reserva."

"O quê?"

Amélia encolheu os ombros.

"Não é grave, fica descansado. Ganha o salário na mesma e ainda temos o dinheiro gerado pelas duas quintas. A única diferença é que não tem de estar todos os dias no quartel, o que até é uma vantagem porque o regimento vai sair de Penafiel."

"A sério?"

"Ainda é um segredo, mas Infantaria 6 segue para o Porto já em Outubro. Se o Mário ficasse no regimento, teríamos de nos mudar também para lá. De modo que até ficámos a ganhar."

"Portanto, está tudo bem."

"Sim. E verdade que lhe tiraram igualmente a organização do núcleo de Penafiel da Mocidade Portuguesa, mas isso..." Encolheu de novo os ombros, como se essa decisão não tivesse importância nenhuma. "Mas nunca pensei que também se fossem meter contigo. Acho até um pouco estranho.

Tu não passas de um subordinado, não é verdade? Por que razão te foram punir?"

"Digamos que eu tinha antecedentes dos meus tempos de estudante em Lisboa e... enfim, tive uma vez um incidente desagradável com o inspector que cá veio. O tipo pelos vistos tomou-me de ponta."

Amélia passeou os olhos pelo uniforme, como se quisesse gravar na memória a imagem do seu amante fardado.

"O que vais fazer agora?"

"Aquilo que sei fazer e sempre quis fazer. Vou ser veterinário."

"Já falaste com o presidente da Câmara? Se quiseres, o Mário dá-lhe uma palavrinha. Ele é um..."

"Não vou ficar em Penafiel", anunciou Luís a frio.

Amélia calou-se por um momento, os olhos muito abertos a absorver o impacto da notícia inesperada.

"Não queres ficar cá?", perguntou, quase a medo.

"Mandaram-me embora."

"Quem é que te mandou embora?"

"A pevide."

"Não estou a perceber. Eles podem mandar-te embora de Penafiel?"

"Pelos vistos a pevide tem o poder de expurgar a função pública de elementos que sejam considerados subversivos. Com o que se passou em Valença, e tendo em conta também o meu passado de estudante em Lisboa, digamos que me aproximo perigosamente dessa definição. A pevide deixa-me trabalhar para o Estado na condição de eu aceitar ser desterrado lá para trás do Sol posto."

"E onde é isso?"

"Trás-os-Montes."

"A Joana também vai?"

"Claro."

"Ela já sabe?"

"Não. Primeiro vim falar contigo."

As consequências destas decisões começaram enfim a ser apreendidas por Amélia na sua plenitude. Os seus olhos humedeceram e bailaram de brilho; o lábio inferior começou a tremer-lhe, mas conseguiu manter a compostura.

"Quando partes?"

"Logo que receba a ordem oficial. Deve ser daqui a duas semanas."

Ela baixou os olhos.

"Talvez seja melhor assim."

"O que queres dizer com isso?"

"Quero dizer que talvez seja melhor assim."

Luís encostou a palma da mão à face de Amélia e fê-la deslizar suavemente pelo rosto perfeito.

Sentiu-lhe a pele quente e sedosa e suspirou, angustiado com a separação que sabia ser inevitável.

Como podiam as coisas ter corrido assim tão mal?

"Virei cá tantas vezes quantas puder", murmurou. "Não suporto estar longe de ti."

Amélia abanou a cabeça com tristeza.

"Não venhas."

"Porquê? Não me queres cá?"

Ela limpou uma lágrima que lhe nascia no canto do olho.

"Ainda não contei a ninguém, mas tenho uma coisa para te dizer. Uma coisa muito... enfim, muito aborrecida."

"O quê?"

"Tenho medo de te dizer", gemeu, a voz trémula de quem receia dar um passo irreversível. "Sei que vais odiar-me."

Luís encostou-se a ela e abraçou-a, tentando confortá-la.

"Ó meu amor, nunca te odiarei", disse, muito terno. "Aconteça o que acontecer, sou teu e tu és minha. Não há nada que possa alterar isso."

"Juras?"

"Pela minha vida."

Com a cabeça encostada ao ombro do amante, Amélia respirou fundo. Se não dissesse naquele momento, percebeu, jamais conseguiria dizê-lo. E seria pior quando mais tarde Luís viesse a saber da notícia pela boca de outros. Tinha de ser agora.

Agora.

"Estou grávida."

A revelação deixou Luís estarrecido. Deu de imediato um passo atrás e ficou especado a olhá-la.

Se tivesse acabado de levar um soco no fígado não teria ficado mais chocado do que se encontrava nesse momento.