"Grávida? Grávida como?"
Empalidecendo, Amélia espreitou-o com um sorriso quebrado, envenenado pelo pavor e pela insegurança. Tentava ler-lhe o rosto e receava o pior.
"Estou grávida, Luís."
"De certeza?"
"Fui ontem a uma consulta e o doutor Reis confirmou-me."
A pergunta seguinte era sensível, quase informulável, mas Luís não podia viver na dúvida e tinha mesmo de a fazer.
"De... de quem?"
Amélia olhou-o, subitamente zangada.
"Que achas tu?"
Ele abriu a boca, sem perceber se o coração se lhe apertava de esperança ou de horror.
"Meu?"
"Do Mário."
Chocado, Luís já não sabia o que era pior, se Amélia ter um filho seu se do marido.
"Do... dele?"
"Sim", disse Amélia, evitando olhá-lo nos olhos.
"Tens a certeza?"
"Nós só fizemos duas vezes em Castelo de Paiva. Estive a fazer as contas e a minha gravidez bate certo com... com o Mário."
"Tu fizeste com o Mário?"
A amante ruboresceu, algures entre a vergonha e a indignação.
"Sim, fiz com o Mário", exclamou, fitando-o enfim e quase erguendo a voz. "O Mário é meu marido. Fiz com o Mário, como podia recusar-lho?" Colou-lhe o indicador ao peito. "E tu? Não fazes com a Joana?"
Luís ficou sem palavras. Era verdade que ela estava casada com o capitão e era verdade que ele fazia amor com a sua mulher. Tudo isso era inegável, mas mesmo assim custava-lhe enfrentar a realidade. A mulher que amava fazia amor com outro homem! Se calhar fizera ainda na noite anterior... Caramba, como lhe doía! Imaginou-a com o capitão, ambos a gemerem e a suspirarem, a cama a bater na parede ao ritmo das investidas, e estremeceu. Era evidente que ela já tinha feito amor com o marido, no fim de contas era casada e gerara filhos, mas sempre supusera que, desde que a amara em Castelo de Paiva, ela se lhe tinha tornado fiel. Tratava-se de uma suposição absurda, claro, infantil mesmo, uma vez que ele próprio não se tornara fiel a Amélia.
"Tens razão sobre a minha ida para Trás-os-Montes", disse num sussurro decepcionado. "Talvez seja melhor assim."
Abriu a porta e saiu sem olhar para trás.
Parte Quatro
1939
E nunca vem aquilo que há-
de vir
I
A luz do clarão rubro-amarelado da fogueira que estalava no chão, os ponteiros pareciam alfinetes incandescentes, os mais grossos imóveis lá no alto, como se estivessem incrustados no mecanismo, o mais fino a rodar num tiquetaque nervoso, escalando os pontinhos num inexorável movimento ritmado. Quando o ponteiro mais fino se juntou aos restantes no pico do círculo e assinalou enfim a meia-noite, Juanito ergueu o copo de vinho tinto, o vidro sujo a cintilar como cristal no lampejo bailante do fogo ateado a seus pés, e abriu-se num sorriso.
"Feliz ano nuevo, Paço!"
"Não me chames Paço, já te disse mil vezes!", resmungou Francisco. "Da próxima levas uma chapadona."
"Ay! Mira, que sensible!"
O espanhol esvaziou o copo de um só golo. Fios cor de sangue escuro escorreram-lhe pelos cantos da boca e atravessaram os pelos aloirados da barba até se juntarem no queixo pontiagudo. Dali o vinho começou a pingar; eram gotas grossas, gordas, suculentas. Pousou o copo, respirou fundo, sentiu o ardor do álcool aquecer-lhe o peito, arrotou e limpou a boca e o queixo à manga do casaco imundo.
"Entonces? Não celebras o ano novo?"
Francisco encolheu os ombros.
"Para quê? É um dia como outro qualquer!"
"Mas entrámos agora em 1939, bombre!"
"E depois?"
Juanito rolou os olhos e fez uma careta de enfado.
"Ay, cofio!", suspirou, baixando-se para pegar na garrafa verde-escura que repousava junto a um saco de areia. "Vocês, os Portugueses, são mesmo uns tristonhos!" Voltou a encher o copo. "Nunca vi coisa assim, madre miai"
"Mas o que queres tu celebrar, meu grande maricas? O que tem 1939 assim de tão especial?"
"Bueno, 1939 vai ser o ano da paz, wof" Pousou a garrafa. "Vamos acabar com os rojos e teremos a paz em Espanha e a paz no mundo." Pegou de novo no copo e mirou o companheiro.
"Salud!"
O português esfregou os olhos. Sentia-se com falta de paciência e as celebrações do ano novo pareciam-lhe um ritual sem sentido, criado com o único objectivo de o enervar. Para ele, o português sisudo, o homem que não gostava de festas, aquela noite era exactamente igual a todas as outras, não via diferenças; o ar permanecia gelado e a treva dominava tudo, uma sombra igual à de qualquer outra noite de Inverno.
Esticou o pescoço e olhou lá para baixo, tentando destrinçar as águas azuladas do rio Segre.
Escutava na perfeição o gorgulhar fresco e cristalino das correntes, mas àquela hora as águas fluíam negras, pretas como o vinho ardente que bailava no copo de Juanito.
Os dois legionários encontravam-se de plantão na margem esquerda do Segre, com ordens para guardarem uma ponte conquistada uma semana antes pela Divisão Littorio, uma das quatro divisões italianas agora empenhadas na guerra. Já não integravam a IV Bandera, mas a VII Bandera, e a Legião já não se chamava Tercio de Extrangeros, mas Legión Extran-gera, o que, aliás, lhes parecia fazer muito mais sentido e correspondia a uma velha aspiração do seu corpo de mercenários.
A mudança de regimento tinha sido um produto do ferimento sofrido por Francisco em Badajoz, quando um franco--atirador lhe alojara uma bala na bacia. Passou dois meses no hospital e mais quatro meses em convalescença, o suficiente para perder o resto da campanha da Columna Madrid.
Falhou a épica libertação do Alcazar de Toledo e a grande batalha pela capital, mas, feitas as contas, concluiu não ter perdido nada de especial. Afinal o duelo por Madrid terminara num empate, sem que nenhum dos lados se conseguisse impor ao outro. Os nacionalistas tinham ficado a cercar a cidade e os republicanos barricados lá dentro, um fiasco no qual felizmente não estivera envolvido.
Fora quando ainda se encontrava no hospital de Badajoz que o primeiro novo regimento da Legião, a VII Bandera, tinha sido criado, depois de se ter aberto um banderín central de engacbe em Talavera. Os elementos desta nova bandera foram recrutados nesse banderín e enquadrados por legionários mais experientes, todos eles homens das outras banderas que haviam sido feridos e, ainda no hospital, acabaram por ser transferidos para a VIL Fora o caso de Francisco.
Quando lhe deram a notícia da transferência compulsiva Para o novo regimento, a única coisa que pediu, deitado na
cama da enfermaria com a anca toda ligada, arrancou um sorriso ao sargento Gomez.
"Transfiram-me também aquele maricas."
"Quem?"
"O pandeiro do Juanito."
"Quem? O Juan Escoso?"
"Sim, esse cabrão."
"Mas vais ter muitos novos companeros na VII Bandera, hombre! Olha, estão a chegar agora muitos portugueses, os Mariachos, e..."
"Os Viriatos."
"Isso, uh... os Viriachos... de modo que eles vão ser colocados em todas as banderas." Bateu-lhe no ombro. "Não estás contente? Vais ter compatriotas a combater ao teu lado, carayl"
"Quero lá saber."