A tia exibiu as oliveiras que se estendiam pela quinta; pareciam velhas bruxas carcomidas pelo tempo.
"Trabalho é coisa que não falta por aqui, valha-me Deus", exclamou. "Olha-me para este olival!
Não é lindo?"
"Lá isso é", concordou sem convicção.
"Então vais-nos dar uma ajudinha."
"Sabe, as azeitonas não me interessam muito..."
"Então o que te interessa?"
O sobrinho quase embatucou. Não lhe parecia grande ideia passar as férias de Natal a tratar de um olival, ainda por cima com o frio que fazia. Mas não o podia explicar com essas palavras. Em busca de um pretexto para se escapar, contemplou a propriedade e simulou uma expressão pensativa.
"A tia já ouviu falar na campanha do trigo?"
"Sim, andam agora com essa conversa. Porquê?"
"Não encara a possibilidade de passar a plantar trigo? Dizem que querem acabar com as importações e que é preciso tornar o país independente na produção do pão. Parece que o Estado paga uma fortuna por cada hectare plantado."
"Não é bem assim. Existe de facto um subsídio de cem escudos por hectare, mas só se o trigo for plantado em terras incultas ou onde houver cultura da vinha. Não é o nosso caso."
"Olhe que a campanha do trigo é o futuro, tia."
"Talvez, mas não para nós."
A conversa teve o dom de esfriar o entusiasmo de dona Maria pelo recrutamento do sobrinho. Tornara-se-lhe por demais evidente que Luís não mostrava o mínimo interesse no trabalho nos olivais e resolveu deixá-lo em paz.
Contudo, isso não foi necessariamente uma benesse, como Luís depressa percebeu. Se o tempo em Bragança já era lento, nos Cerejais teve a sensação distinta de que os relógios haviam literalmente parado. Não tinha nada que fazer.
Deitado na cama pela manhã, o corpo enroscado nas mantas para se abrigar do frio glacial, Luís desesperou de esperar, até porque esperava por nada. Limitava-se a languescer na prostração mole das férias. Lá fora os caseiros trabalhavam nos olivais e a patroa dirigia tudo como um rijo capataz. A tia Maria era uma quarentona de armas, viúva de um professor da escola primária que encontrou na gestão da propriedade do falecido irmão o seu propósito de vida, e exibia uma energia de fazer inveja a qualquer rapazola.
Vendo-os assim ocupados, a ela e aos caseiros, Luís suspirou vezes sem conta, perguntando a si mesmo se queria de facto a vida de província, se o seu futuro estaria realmente naquele pedaço de terra, se iria terminar os estudos para se enterrar nos Cerejais.
"Que estopada!"
O Natal foi, porém, celebrado com inesperada animação. Mulher avançada para o seu tempo e disposta a ignorar convenções sociais quando a ocasião o aconselhava, a tia convidou o caseiro e a família para a ceia, uma alteração à rotina que contrastou com os usuais jantares a dois à luz do candeeiro de petróleo. O senhor Ferreira e a mulher tinham quatro filhos que pareciam não parar quietos, remexendo-se nas cadeiras ou correndo à volta da mesa; a mulher afadigava-se a tentar controlá-los e Luís seguia o pandemónio com um olhar divertido. Sempre era um espectáculo diferente a animar a noite.
"Então, Ferreira?", perguntou a tia. "A ceia está boa?"
"Ah, minha senhora, este arroz de polvo está uma espantação", respondeu o caseiro, as mãos grossas e rudes agarradas à colher. "O picoso é que me apoquenta um poucochinho, faz-me arder a boca." Olhou para Luís. "Não acha, senhor deitor?"
"Eu gosto assim."
Aquele arroz era o prato tradicional do Natal em casa e, servido molhado e com um travo suave a picante, apresentava o dedo inconfundível da tia.
"Então o que planeias fazer quando acabares o liceu?", quis ela saber quando entraram na sobremesa, um delicioso arroz-doce salpicado a pó de canela.
"Oh, não sei ainda."
"Tens ideia de vir para cá?"
"Para quê? Para colher azeitonas?"
Sabendo que os olivais não seduziam Luís, a tia desviou os olhos para o caseiro.
"Para isso temos aqui o senhor Ferreira." Voltou a encarar o sobrinho. "Na verdade, tudo isto está a funcionar muito bem. Mas tenho curiosidade de conhecer os teus planos, claro."
Luís encolheu os ombros.
"ó tia, não tenho planos para já. Vou terminar o liceu e depois logo se vê..."
Dona Maria serviu-se do arroz-doce, como se concentrasse nele toda a sua atenção.
"E moça? Já tens alguém em vista?"
Apanhado de surpresa, o sobrinho corou.
"Eu? Claro... claro que não."
"Mas é melhor ires pensando nisso. Já te vais fazendo um homenzinho e começa a ser hora de constituíres família."
"Tia! Eu só tenho dezassete anos."
"E então? Já estás em idade." Olhou para o caseiro, como se buscasse apoio. "Não acha, Ferreira?"
O caseiro assentiu de pronto, solícito com a patroa.
"Sem dúvida, minha senhora. Há tempo e retempo que o menino devia ter posto o olho numa mocinha." Mergulhou a colher no arroz-doce. "Eu cá casei aos quinze. Atrasmente era tudo cedinho."
Sem paciência para argumentar com o senhor Ferreira, que considerava um pacóvio das berças, Luís optou por se calar.
"Tu já viste a Natália?", arriscou a tia.
"Qual Natália?"
"A filha do doutor Leitão."
"Quem? A do farmacêutico?"
"Essa mesmo. Olha que é um bom partido." Voltou a espreitar o caseiro. "Não é, Ferreira?"
"Oh, se é!", concordou o homem, para quem a palavra de dona Maria tinha qualidade divina.
"Ademais, e se a minha senhora me permite dizer isto, o deitor Leitão está cheio de cunfres e aquela cicisbeia ainda vai herdar uma grossa maquia."
Luís fez um estalido irritado com a língua.
"Eu quero lá saber da Leitona!"
"Natália", corrigiu a tia. "Está um amor de moça."
"É toda bem posta, sim senhora", concordou o senhor Ferreira com um balouçar afirmativo da cabeça, as palavras abafadas pelo arroz-doce que lhe enchia a boca. "Dá gosto vê-la."
O rapaz encolheu exageradamente os ombros, para sublinhar a sua indiferença.
"Bom proveito!"
O caseiro olhou-o de esguelha com a expressão entendida de quem conhecia a vida.
"Ou me engano muito, minha senhora, ou aqui o seu sobrinho é um salamurdo dos antigos", observou para a patroa. "Anda quietinho como um mocho, mas fá-las pela calada."
O assunto ficou encerrado, ou pelo menos assim parecia. Quando chegou a altura de abrir os presentes e Luís recebeu o seu, porém, o rapaz deparou com um pequeno livro de poemas que a tia lhe oferecera.
"Camões?", interrogou-se, contemplando a capa e o nome do autor. O título era Lírica.
Fez um sorriso pouco convincente. "Obrigado, tia. Gosto muito."
A tia estendeu o braço na direcção do livrinho, pegou nele e folheou-o com cuidado.
"Queres ouvir isto?", perguntou, localizando um trecho com o dedo. Afinou a voz, preparando-se para recitar. "Ora presta atenção."
Amor, que o gesto humano na alma escreve, Vivas faíscas me mostrou um dia, Donde um puro cristal se derretia Por entre vivas rosas e alva neve.
"Que bem", disse Luís, esforçando-se por esconder o enfado e parecer sincero. "Muito bonito, sim senhora."
"É, não é?", sorriu a tia, acenando com o pequeno livro. "É disto que as catraias gostam.
Recitas-lhes uns poemazitos de Camões com voz delicodoce e, tumba!, elas ficam logo todas caidinhas."
O sobrinho fixou os olhos no livro, de repente genuinamente interessado.
"A sério?"
"Claro", confirmou ela. "As mulheres adoram palavras românticas, o que pensas tu? E
quem há por aí que seja mais romântico do que o zarolho? Vais ter com a Natália, bufas--
lhe estes poemas ao ouvido e vais ver o que acontece..."