"Pois sim, mas quem me fará o parto?"
"Calma", pediu Fernando, forçando um sorriso. "Cada coisa a seu tempo. Primeiro temos de ver se está mesmo grávida. Não devemos vender a pele do urso antes de o termos morto."
O médico levou-os ao seu gabinete, um compartimento arejado com janelas em duas paredes e um cartaz pregado atrás da secretária a exibir o interior do corpo humano. Deitou Joana numa marquesa e auscultou-lhe o ventre. Efectuou ainda mais alguns testes antes de a mandar erguer-se e convidá-los a sentarem-se diante da sua secretária.
"É como eu pensava", avisou. "Falso alarme."
Um esgar de decepção perpassou pelos dois rostos que fitavam o delegado de saúde.
"A Joana não está grávida?"
"Lamento muito."
Luís encostou-se à cadeira e deixou cair a cabeça para trás, desanimado.
"Oh, não."
"Eu sei que vocês têm tentado ter filhos", disse Fernando. "Mas mantenho o diagnóstico que fiz no ano passado. A Joana tem um problema que a impede de conceber."
"E não há nada que possamos fazer?"
"Nada."
A súbita saída de Penafiel convencera Luís de que era altura de dar um novo rumo à sua vida.
Amélia estava-lhe entranhada na carne, mas, se não podia tê-la, tentaria esquecê-la. A melhor rota de fuga pareceu-lhe ser Joana, pelo que decidira investir no casamento. Tinha deixado de acreditar nele antes mesmo de dizer "sim", devido ao inesperado reencontro com a sua velha paixão do liceu. Mas as coisas haviam mudado de novo. Precisava de apagar Amélia da memória e Joana teria de ser a borracha.
Tentaram gerar filhos, na esperança de que as crianças lhes trouxessem a alegria que manifestamente lhes faltava. Passavam manhãs inteiras entre os lençóis e chegaram a tomar as mais variadas mezinhas, umas para o dotarem de força, outras para a tornarem mais fértil, mas, por mais que se esforçassem, não havia modo de conseguirem resultados. Joana não emprenhava.
O diagnóstico do delegado de saúde tinha, por isso, a ressonância de uma sentença.
Tentaram e não conseguiram. Aquela manhã de enjoos foi a última de esperanças e a primeira de certezas. Não haveria filhos. Sem eles e sem Amélia, a vida de Luís parecia decorrer num deserto, sem rumo nem sentido, entregue ao mero desfiar vagabundo dos dias.
Em busca de um propósito que o guiasse na vida, o novo veterinário da vila entregou-se então com abandono à natureza. Começou a deambular durante horas com Relâmpago pelo Parque de Montezinho, como se procurasse na floresta o propósito que lhe faltava entre os homens. Tinha ali a ilusão de um retorno à pureza inicial da condição humana.
Sempre que deambulava pelo bosque enchia os pulmões com o ar puro e perfumado dos carvalhos, dos pinheiros, dos freixos e dos vidoeiros que cobriam o horizonte de verde, e mergulhava no terreno xistoso do vasto e sereno parque, onde as urzes e giestas do cume das serras eram rasgadas por vales atravessados pelos rios, sinuosos e agitados, que traçavam sulcos por entre salgueiros e amieiros, cursos de água frios e transparentes que ia percorrendo com a sua montada em busca do sabor límpido e revigorante do Rabaçal ou do Tuela.
Descobriu que o local era perfeito para quem dedicava a vida aos animais. Nos seus longos passeios pela floresta, Luís deparou-se amiúde com a vida selvagem que ela ocultava. Por entre os ramos de um carvalho situado a meia encosta detectou um ninho de águias-reais e passou a incluir o local no seu roteiro semanal. Vezes sem conta viu o caminho ser cruzado por lebres, veados, javalis e corços; junto aos riachos encontrou lontras, martas, toupeiras de água e até uma víbora cornuda que enervou Relâmpago.
A floresta derramava uma vitalidade serena, como a de uma besta adormecida, traiçoeira ao despertar. Luís descobriu-o quando, certa vez, desmontou junto ao rio Baceiro e se deparou com uma alcateia de lobos ibéricos, de pêlo castanho-avermelhado e ferozes pupilas oblíquas. Ao ver os lobos, Relâmpago assustou-se, empinou o corpo, apoiando-o sobre as patas traseiras enquanto relinchava de pavor, e deu meia volta, fazendo tenção de fugir a galope. Luís conseguiu segurar a correia do cavalo e prendê-la a um salgueiro o tempo suficiente para montar o animal. Tudo isto se revelara, porém, desnecessário, uma vez que os lobos tinham passado ao largo e ignorado as presas potenciais; ou a fome não era muita ou Luís lhes parecera temível.
III
O tenente Gutierrez apareceu numa camioneta, cinco dias depois da solitária passagem do ano na ponte sobre o Segre, e fez sinal aos dois legionários de que montassem na carga.
"Vamonos", gritou.
Francisco e Juanito pegaram na mochila e nas armas e aproximaram-se da camioneta.
"Vamos embora?"
"Si."
"E quem nos vem substituir, meu tenente?"
"Ninguém."
"Ninguém como? Fica a ponte abandonada?"
"Já não é preciso guardá-la", devolveu o oficial com um sorriso. "Tomámos Borjas Blancas e os rojos estão em debandada. Vamonos!"
Chegaram perto da nova zona da frente ao fim da manhã. A estrada enchera-se de refugiados.
Eram velhos, mulheres e crianças que passavam para cá envoltos em trapos andrajosos, de ar abatido, o corpo extenuado, carregando as roupas e móveis e comida em carroças e mulas e muares; tudo o que tinham podido tirar de casa fora, na urgência da partida, embrulhado em lençóis e cobertores, e era com os poucos haveres que lhe restavam que aquela massa humana, curvada e miserável, se arrastava penosamente ao longo da estrada lamacenta.
Atrás das filas de gente, as colunas de fumo riscavam o horizonte como vulcões activos, os fios negros de fuligem a ziguezaguearem na vertical até se fundirem no tecto branco--cinza das nuvens; ouviam-se detonações longínquas, o tique-taque remoto do tricotar das metralhadoras, os estampidos fracos do ocasional tiroteio, o enervante zumbido dos aviões no seu bailado celeste.
Eram as notas da estranha sinfonia dos homens em fúria, a raivosa cacofonia de morte e destruição que abalava aquele dia cinzento e triste de Inverno na Catalunha.
Passaram pelos escombros de Borjas Blancas, a povoação totalmente devastada pelos combates dos últimos dias; viam-se paredes retalhadas, telhados derrubados, crateras cavadas na rua, automóveis carbonizados. Cruzaram em silêncio o casario esventrado e seguiram em frente, na direcção de Castellnou de Seana. Juntaram-se a mais colunas; havia legionários e regulares a marchar na estrada ou transportados em camiões, alguns a cantar, a maior parte a dormitar.
Francisco inclinou-se na borda da carga da camioneta, a cabeça quase a entrar pela janela lateral dianteira, e espreitou o tenente Gutierrez.
"Meu tenente, fomos nós quem tomou isto?"
"Claro."
"A VII Bandera?"
"Não, não foi a Legião, hombre. Foram as Flechas."
"Os Italianos?"
O tenente fez um trejeito irritado.
"Italianos e Espanhóis, hombre." Abanou a mão, como quem não está com disposição para conversar. "Agora vá, não me incomodes."
Francisco endireitou-se na carga. As Flechas Negras, as Flechas Azuis e as Flechas Verdes eram divisões italianas, embora incluíssem soldados espanhóis enquadrados por oficiais italianos, facto que as forças nacionalistas, embaladas na rivalidade entre tropas de nacionalidades diferentes, não se cansavam de sublinhar sempre que as Flechas registavam um êxito.
"Porra", praguejou o português, olhando para Juanito. "Agora são os italianos quem combate."
"Joder."
Francisco fungou e cuspiu para a margem da estrada.