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"Sô'dotor", disse por fim a viúva, no dia da última visita do veterinário. "Nem sei como pagar-lhe."

"Oh, não faz mal."

"O que quiser, sô'dotor. O que quiser. Não tenho cunfres, o dinheiro faz-me falta para os meus meninos, mas ofereço--lhe o que pedir."

"Deixe estar. Faço-lhe isto a nome de palhas."

"A nome de palhas, não, que eu não sou nenhuma pedinte, valha-me Deus. Onde é que já se viu? Tenho de lhe pagar, antão não é? Quer uma dezena dos meus pombinhos, ora quer?"

"Pombos?", riu-se Luís. "O que faria eu com os seus pombos?"

"Oh, tanta coisa. O sô'dotor é lambiteiro, qu'eu bem sei. A sua senhora podia-lhe fazer uns esturgidinhos..."

"Ah, não! Esturgido de pombo, não!" Ergueu a sobrancelha, como quem acabou de ter uma ideia. "Sabe do que gostaria eu?"

"Diga, sô'dotor."

O veterinário olhou para o rafeiro, que parecia vigiar o pombal.

"De ficar com o seu cão."

A viúva quase deu um salto.

"O Nilo, sô'dotor?"

O cão ergueu a cabeça e as orelhas ao ouvir o seu nome e mirou a patroa, atento.

"Sim, o M/o."

"Mas... não me posso quitar do Nilo."

"Ainda lhe pago por cima", insistiu. "Dou-lhe um malmu-de de azeite e cinquenta escudos."

A viúva hesitou.

"Não... não pode ser, sô'dotor..."

"Ah", exclamou Luís, escondendo a decepção, quase envergonhado por ter feito a proposta. "Eu compreendo. Então não me dê nada, deixe estar. Dá-me uns pombos da próxima, está bem?"

O veterinário ergueu-se da cadeira, pôs o chapéu na cabeça e deu meia volta, dirigindo-se ao seu cavalo. A mulher vacilou, indecisa; foi apenas um instante, porque de imediato se levantou.

"Espere, sô'dotor."

Luís estacou junto a Relâmpago e mirou-a, expectante.

"O que é?"

"Leve Mo"

"Ah, não. Deixe estar."

"Leve-o."

V

O caudal líquido deslizava vigoroso pelo vale, a corrente de um tom de prata cristalino, o espelho de água a reflectir as nuvens baixas que deslizavam em silêncio ao sabor da brisa.

"£/ Llobregatr, gritou uma voz no camião da frente. "Chegámos ao Llobregat!"

Os homens do camião onde seguia Francisco ergueram-se de imediato e viraram os olhos para a dianteira, tentando vislumbrar a maravilha que era anunciada com tanta excitação.

"O que se passa?", perguntou o português, empurrando os seus camaradas para ganhar um melhor ponto de observação no camião. "Chegámos onde?"

"Chegámos ao Llobregat", disse Juanito, esforçando-se também ele por espreitar lá para a frente.

"A obra do gato?"

"Llobregat!"

"O que é isso?"

"É um rio, hombrer Rolou os olhos. "Ay, madre mia, vocês os Portugueses não sabem nada de nada!"

Francisco fixou a atenção no caudal de água que cortava o vale ao pé da estrada.

"E o que tem este rio de especial?"

"Barcelona, Paço!", gritou o amigo quase em êxtase. "Barcelona fica já a seguir!"

A informação incendiou os olhos do legionário português. Tinha pressa de acabar com a guerra e voltar para os braços de Rosa, e fora essa pressa que o levara às posições de vanguarda nas colunas do regimento. O legionário português via-se nesse instante entre os primeiros a atingir o rio Llobregat e a voltar-se em direcção a Barcelona. Poderia haver melhor notícia?

Por essa altura, a guerra apresentava-se, porém, algo diferente da que conhecera quase três anos antes. As valorosas e destemidas cargas de infantaria, de baioneta calada e aos berros de " Viva la muerte!", não passavam já de resquícios da memória, substituídas pelas modernas barragens de artilharia e pelos pesados bombardeamentos da aviação. O soldado inimigo deixara de ter um rosto, tornara-se invisível, transfor-mara-se numa abstracção.

Depois de inspeccionarem as margens do Llobregat, os legionários foram instalar-se em Montblanc, que havia caído pouco tempo antes. Que contraste com os combates renhidos do início da guerra, quando ficavam dias para tomar uma simples igreja, como acontecera em Almendralejo!

Agora tudo parecia rolar com facilidade.

Uma vez acomodado no boleto que lhe fora destinado, Francisco recebeu ordens para fazer o turno de sentinela às muralhas medievais da povoação. Não era um trabalho que apreciasse, mas o tempo morto permitia-lhe reflectir sobre as suas experiências, e as últimas deixavam-no algo desconcertado. Enquanto vigiava o horizonte não pôde deixar de estranhar as mudanças na forma de conduzir as operações. Parecia-lhe mesmo que a guerra já não era matança crua, já não era carne, nem sangue, nem fúria, já não eram lágrimas nem dor; era luz e era cor, transformara-se num espantoso espectáculo feérico que enchia de fulgor a linha onde o céu se colava à terra.

Ao cair da noite, sentado junto ao portão de Sant Jordi, viu o horizonte incendiar-se com o clarão escarlate e azulado da fornalha de guerra. Eram os canhões a bater as posições inimigas numa erupção de chamas e ferro, uma deslumbrante visão de luz acompanhada pelo ribombar remoto das detonações, estampidos surdos que estralejavam à distância. Lampejos sanguíneos denunciavam incêndios, Barcelona ardia sob a chuva de granadas que cruzava os céus, uma tempestade de ferro uivava com silvos sinistros e explodia com fragor ao tombar na cidade sitiada.

"Para a semana estaremos lá", observou Juanito.

Mas foi ainda mais depressa do que isso.

O camião onde seguiam Francisco e Juanito cruzou o rio Llobregat a 25 de Janeiro, integrado numa coluna que progredia com cautela. Apesar da prudência, a força nacionalista quase não encontrou resistência. Apenas uma estrada deserta.

"Estranho, isto", observou Francisco, desconfiado. "Os gajos não combatem?"

A coluna prosseguiu devagar, como se esperasse uma emboscada ao virar da esquina, mas não encontrou obstáculos até se deparar com as primeiras casas.

"Alto!", ordenou o coronel Fuentes, que seguia atrás e ultrapassou a coluna para inspeccionar o início do perímetro de Barcelona.

A coluna imobilizou-se e os motores foram todos desligados. Os oficiais subiram aos camiões e, de pé no tejadilho, perscrutaram o horizonte urbano com binóculos, tentando detectar sinais de qualquer armadilha. Ficaram por ali duas dezenas de minutos à procura de vultos suspeitos ou de posições fortificadas, mas nada conseguiram vislumbrar de anormal. Como tudo permanecia calmo, tomaram uma decisão.

"Vamonos", disse o coronel, descendo do camião e, com a mão esquerda, fazendo ao motorista um gesto para avançar.

Os roncos dos motores rasgaram o sossego e os camiões retomaram a marcha. Avançavam devagar, sempre à espera de uma surpresa, mas não havia sinais de resistência. Sentados na carga dos veículos, os homens viram em silêncio o casario dos arredores de Barcelona desfilar em torno deles, as ruas desertas, as persianas fechadas, o lixo a acumular-se por toda a parte.

Grossas nuvens negras rolavam para o céu e enchiam o firmamento; era a gasolina dos postos da Campsa que ardia, incendiada pelos republicanos em fuga.

Cata-cata-cata-cata-cata.

Uma súbita erupção de tiroteio obrigou a coluna a imobilizar-se.

"Porra!", resmungou Francisco, encolhendo-se no assento. "Estava a ver que os tipos não faziam nada..."

"Oitava companhia!", gritou o sargento Gomez. "Descer!"

Uma companhia de legionários apeou-se e seguiu imediatamente para o local de onde vinha o tricotar dos disparos. De imediato o tiroteio recrudesceu de intensidade e, depois de atingir um pico de fúria, pontuado por duas grandes detonações, logo se calou, como se alguém tivesse amordaçado o cano das armas.