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Instantes mais tarde, a companhia retomou a sua posição na coluna, os soldados a rirem e a festejarem o último triunfo.

"Eram duas ametralladoras rojas", gritou o sargento Go-mez, regressado daquele foco de combate. "Vamonos."

Barcelona caiu assim, com um leve empurrão, como se estivesse apenas protegida por uma muralha de papel. Caiu após uma tímida defesa, quase simbólica; não passaram de uns quantos tiros disparados por uma mão-cheia de resistentes mais teimosos. Teimosos, mas não demasiado. Os restantes, aqueles que perfaziam o grosso da força republicana na Catalunha, haviam deixado já de acreditar em milagres e escapavam-se agora em direcção à fronteira, em busca de refúgio na vizinha França. Deixaram atrás deles uma Barcelona deserta, temerosa, moribunda, entregue ao inimigo, abandonada às pilhagens, cheirando a podre, a tremer de medo, à espera do pior.

Ao fim da tarde, deambulando por entre aquelas ruas desertas e largadas ao invasor, Francisco viu o silêncio absoluto ser timidamente quebrado. Primeiro uma voz e depois outra e outra ainda.

Aos poucos, de forma hesitante, mas gradual, as ruas por onde os legionários passavam foram recebendo homens, mulheres, crianças. De início era um punhado inseguro, depois o punhado cresceu e ganhou atrevimento, chegaram mais e mais pessoas, a certa altura a longa avenida das Les Rambles encheu-se de carros e de festa, de buzinadelas e de vozes; eram os nacionalistas que sempre se haviam mantido calados na Catalunha e que, em catarse, saboreavam o seu triunfo.

"Arriba Espana!", gritavam desordenadamente.

Na euforia da vitória, três civis abraçaram Francisco e algumas mulheres beijaram os legionários, mas o português

constatou que nenhuma se aproximava dele. Também não queria aquelas cabras, pensou com desdém; Rosa valia por elas e por muitas mais.

A certa altura, o grupo de populares em festa cresceu muito, cresceu tanto que se tornou uma vaga, depois uma maré, era já um rio a transbordar na Placa de Catalunya; viam-se lágrimas nos rostos e bandeiras rubro-douradas a esvoaçar sobre as cabeças, estendiam-se milhares de mãos no ar, ouviam-se sucessivas aclamações, gritos, vivas, agitavam-se lenços brancos, davam-se abraços, escutavam-se exacerbados arriba Espana!, a loucura envolvia os combatentes, tragava-os na mole humana, engolia-os numa inesperada vaga de arrebatado nacionalismo em terra até aí republicana.

Apesar da noite de folia e álcool, Francisco mal teve tempo de saborear a conquista de Barcelona, pois a VII Bandera recebeu imediatamente ordens para se dirigir aos Pirenéus e dar caça aos republicanos em fuga. A progressão para norte revelou-se, no entanto, inesperadamente difícil, não por causa do inimigo, mas devido a outro tipo de obstáculos.

"É só tralha!", observou o português.

Ao percorrerem o caminho, os legionários depararam-se com a estrada pejada de entulho e destroços. O estorvo era tanto que foi preciso ir procedendo a limpezas à medida que se avançava.

Os soldados tiveram de se apear e atirar todo o lixo para as bermas; viam-se uniformes, carros a muares, carroças, cavalos mortos, automóveis avariados, pilhas de papéis, tábuas, pneus, móveis partidos, detritos de toda a espécie empilhados por onde quer que os olhos se voltassem.

O som de explosões irrompeu mais à frente, na estrada, quando os batedores se aproximaram de Gerona. Estabeleceu-se a confusão, o que é, o que não é, chamou-se a aviação, 461

empurraram-se as peças de artilharia para a dianteira e as forças nacionalistas começaram a despejar ferro e fogo sobre o casario da povoação catalã. Os legionários foram espalhados pelos campos em redor, com Francisco e Juanito a montarem um ninho de metralhadora por entre duas vistosas azinheiras, num promontório de giestas com vista para os acessos a Gerona e ao rio Onyar.

"Mas estes gajos estão ali a fazer o quê?", interrogou-se Francisco, enquanto contemplava o povoado do outro lado do rio. "Ainda julgam que vão ganhar a guerra?"

"Não, Paço. Estão a ganhar tempo."

"A ganhar tempo? Para quê?"

"Para que os outros consigam fugir, hombre, não percebes? Os tipos deixaram homens e artilharia aqui em Gerona para nos travar e darem tempo ao resto dos rojos de escaparem para França."

"Ah." Francisco coçou a barba rala que lhe crescia no queixo. "E os Franceses vão deixá-los entrar?"

Juanito riu-se.

"Sei lá! Se não deixarem, esses cohos estão todos tramados!"

Permaneceram uma semana inteira naquele promontório arborizado, Gerona a seus pés.

Instalaram uma tenda atrás de uma azinheira e era ali que resistiam ao frio e à chuva do desagradável Inverno catalão. Para compensar, o rancho melhorou um pouco, à custa dos enchidos que encontraram escondidos numa casa de agricultores das redondezas; dia e noite refastelaram-se com butifarras e llangonissetas, que acompanhavam com batatas ou fideus, uma espécie de massa comum na região, tudo abundantemente regado com vinhos de Alella que pilharam de uma adega abandonada.

Os bombardeamentos de Gerona tornaram-se uma constante ao longo daqueles dias; os incêndios no povoado constituíam

mesmo a única atracção na vida de Francisco e Juanito naquele promontório para onde ambos pareciam ter sido desterrados. Até que, corria o dia 4 de Fevereiro, as forças nacionalistas decidiram forçar os acontecimentos e procederam a um vigoroso bombardeamento com bombas incendiárias.

Gerona transformou-se num vulcão, o solo tremia sob o impacto das detonações, o ar reverberava, viam-se chamas por toda a parte, ardia o velho bairro judeu de El Call, ardiam os edifícios na Placa Sant Feliu, na Placa Catedral, no Carrer Ballesteries, por toda a parte lavrava um fogo infernal. Os blindados e os soldados nacionalistas carregaram pela estrada, lá pela esquerda.

Vistos do promontório das azinheiras, máquinas e homens pareciam baratas e formigas a convergir para o rio e a mergulhar na fornalha de guerra.

Gerona caiu nesse dia.

Dali até aos Pirenéus foi um passo. A resistência dos republicanos fora quebrada, o último bastião ultrapassado.

Uma bandeira francesa içada num poste distante, o pano sacudindo ao sabor do vento forte do entardecer, assinalou a chegada do camião de legionários ao destino.

"La Junquera", anunciou Juanito.

Francisco olhou para a balbúrdia em redor.

"O que é isto?"

O espanhol apontou para a tricolor para lá do arame farpado.

"Corâo, então não vês ali a bandeira francesa?"

"Sim."

"É a fronteira, carayV

Os legionários foram despejados do camião e o português hesitou diante da indescritível confusão estabelecida na estrada. Um cenário de verdadeiro caos revelava a dimensão da fuga de meio milhão de pessoas para aquela zona, muitas delas autorizadas pelos Franceses a atravessar a fronteira.

Mal se conseguia caminhar junto àquele sector, tão pejado se apresentava o caminho de obstáculos; eram cavalos esventrados, tanques destruídos, automóveis carbonizados, carroças amontoadas, tendas desfeitas, lixo acumulado, ratos com as tripas a secar ao sol, entulho, imundice, os restos da miséria humana abandonados na loucura cega da fuga.