O sargento Gomez apontou para a cordilheira que rasgava o céu em redor.
"Atenção, legionários!", chamou. "Há muitos rojos a tentar passar a fronteira pelos Pirenéus.
Recebemos ordem para ficarmos à espera deles naquele monte."
Um murmúrio impaciente cresceu no grupo.
"Estão com medo?", perguntou o sargento com uma ponta de sarcasmo na voz.
"Nós somos legionários, meu sargento", protestou Francisco, sempre desejoso de acção. "Ficar num monte à espera que os comunistas apareçam é coisa para gente amaricada, como os requetés e os falangistas. Com tanto monte por aí, o mais certo é não se passar nada."
"Fiquem descansados que os rojos vêm ter connosco."
"Mas como sabemos isso, meu sargento?"
"A cavalaria está a tratar do assunto. Os nossos homens andam numa azáfama atrás dos rojos, ali para os lados de Requens, e vão tentar empurrá-los para nós."
Os legionários alinharam em pares na estrada, preparando--se para marchar até aos pontos de emboscada. O sargento Gomez percorreu o grupo, como se o estivesse a inspeccionar, e parou junto a Francisco e Juanito.
"És tu o impaciente, hem?", disse, encostando-se ao português.
"Sou legionário, meu sargento."
"Caluda! Vem para aqui." Apontou para Juanito, que se encontrava ao lado. "E tu também."
O par abandonou a fila e pôs-se em sentido diante do sargento. Gomez apontou para o arame farpado ao fundo da estrada.
"Estão a ver a fronteira? Sigam até lá e apresentem-se ao graduado que está a controlar o trabalho dos prisioneiros."
"Mas... não vamos com o resto dos camaradas para o monte?"
"Não discutas a minha ordem!", gritou o sargento. "Cumpre-a!"
Os dois legionários fizeram continência e encaminharam-se para a linha de fronteira. Quando chegaram à curta estrada para onde foram destacados, esperava-os um espectáculo inaudito. Aquele trecho de cinco quilómetros de asfalto parecia um verdadeiro cemitério de carros, um depósito de ferro--velho aberto no meio de uma imensa lixeira; o entulho era tanto que se tornava difícil caminhar por ali.
No ar pairava um fedor ácido a podre e alguns pneus ardiam devagar, erguendo rolos de fumo negro que se abraçavam como serpentes. Francisco e Juanito apresentaram-se diante do graduado e ficaram incumbidos de orientar o trabalho dos presos. Os republicanos aprisionados, agora armados de pás e carrinhos, procuravam desobstruir o acesso à fronteira.
O trabalho era aborrecido e por várias vezes o português perscrutou os Pirenéus, arrependido por ter questionado a ordem de se emboscarem ali.
"Trabalha, cabrão!", exclamou, dando um primeiro pontapé a um preso que demorou um pouco mais a erguer um pedaço de sucata.
O pontapé soube-lhe bem, era uma forma de descarregar a frustração. Seguiram-se outros e outros ainda.
"Andem, mulas! Mais genica nisso!"
Por vezes, entre duas ordens gritadas ou uma coronhada desferida a um prisioneiro mais lento, Francisco espreitava para o outro lado do arame, para o posto de Perthus, em cujo mastro tremulava a bandeira tricolor. Por detrás dos soldados franceses, o legionário vislumbrava uma multidão andrajosa, os rostos congelados voltados para cá, as expressões carregadas de melancolia, os olhos a chisparem de saudade pela Catalunha que haviam deixado para sempre.
Sempre imaginara que seria uma alegria ver o inimigo assim vergado. Mas, agora que esse momento chegara, constatou com surpresa que não era isso o que sentia. A verdade, a estranha verdade, é que não sentia nada. Nada.
A não ser tédio.
"Trabalhem, pandeiros!"
VI
Nilo foi um sucesso, primeiro lá em casa, depois por Vinhais inteira. Nunca ninguém havia visto tal fenómeno por aquelas paragens, cão assim tão vivaço nem no seminário de Nossa Senhora da Anunciação. Como bom veterinário e amante de animais, Luís afeiçoou-se ao rafeiro e fez dele um companheiro inseparável, levando-o nos passeios com Relâmpago pelo Parque de Montezinho.
Joana também lhe achava piada, mas começou a sentir-se incomodada com tanto bicho em casa e nos primeiros tempos não viu qualquer vantagem em adicionar o cão à família.
A verdade é que os animais animavam a casa numa terra onde a vida não era fácil. Situada no topo norte de Portugal, Vinhais estava sujeita ao vento frio e cortante que descia do nordeste, um clima tão rude que o casal teve de voltar a conviver com frieiras nos dedos e as articulações das mãos da cor da ginja madura. A vila tinha pouco mais de dois mil habitantes, que viviam da produção da castanha
e dos frutos secos, mas também da manteiga de Travanca e da indústria da seda e da lã, nas mãos de velhas famílias judias convertidas, como as da falecida sogra de Luís. Havia uma escola, um posto da GNR, uma estação telégrafo--postal, umas igrejas, o seminário e um hospital civil. Claro, existiam ainda umas mercearias, onde toda a gente fazia as compras.
Toda a gente, que é como quem diz. Joana era mulher mimada, habituada à abundância que o juiz Brandão lhe proporcionara em Penafiel e aos frequentes passeios ao Porto para mirar as elegantes vitrinas da Cedofeita e da Rua de Santa Catarina. Não era fácil para ela viver em tal lugarejo, para mais porque estava convicta de que a mulher de um médico veterinário tão distinto como o doutor Luís Afonso não era mulher, era senhora. Humilhava-a por isso ter de se misturar com o povo descalço e malcheiroso na mercearia do senhor Manuel; achava-se melhor do que aquela gentinha e com direito a dispensar o incómodo de tais visitas.
As deslocações à mercearia eram habitualmente uma função de Filomena, a moça que contratara para a ajudar na lida da casa. Mas nesse Verão Filomena recebeu uma carta a informá-la de que a mãe se encontrava às portas da morte na sua velha casa, numa aldeola perto de Bragança, pelo que teve de se ausentar por um mês.
"Preciso de uma nova empregada", explicou Joana ao jantar do segundo dia sem Filomena.
"Então e a Filomena?"
"A Filomena não está cá. Ainda hoje tive de ser eu a ir à mercearia e cozinhar e limpar a casa.
Não estou para isto, é de mais."
"Sim, mas o que se faz com a Filomena?"
"Ora! Despede-se e arranja-se outra!"
"Ah, não! Isso não. Então a moça ausenta-se porque tem a mãe doente e ainda por cima botamo-la na rua? Isso é desumano, não se faz, nem eu aceito."
"Mas... e eu?"
"Arranja-te, Joana. Eu passo o dia a trabalhar e tu estás em casa sem fazer nada. Bem podes aguentar-te um mesinho sem a moça, ou não?"
A mulher olhou em redor, como se avaliasse o trabalho.
"A mim, o que me custa verdadeiramente é ter de ir ao senhor Manei", acabou por confessar. "A mercearia está cheia de campónios, é muito aborrecido."
"Paciência. É só um mês."
O marido agarrou-se à sopa, mas Joana ficou a matutar no assunto. Precisava mesmo de resolver o problema! Ainda nessa manhã estivera na mercearia e não esquecia o fedor avinagrado a povo que os fregueses exalavam pelos sovacos; muitos não deviam tomar banho desde o Verão do ano anterior! Mas como poderia fazer para adquirir os produtos sem ter de se rebaixar a misturar-se com aqueles rústicos para os ir lá buscar?
O cão aproximou-se da mesa e ganiu, interrompendo-lhe o raciocínio. O dono arrancou uma costeleta de porco que estava na mesa e entregou-a ao animal, que a abocanhou e a foi comer para o seu canto na cozinha. Joana seguiu o rafeiro com o olhar, absorta em novos pensamentos, uma ideia a geminar-lhe no espírito.