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"Olha lá, o Nilo é inteligente, não é?"

"Até esmilha!"

"Será mais esperto do que a Filomena?"

Luís riu-se.

"Não me admirava nada", gracejou.

Joana agarrou na colher e começou também ela a comer a sopa, muito satisfeita consigo mesma.

Tinha encontrado a solução.

O senhor Manuel deu de caras na manhã seguinte com um rafeiro castanho parado junto ao balcão da mercearia; o animal trazia um cesto de vime na boca e o olhar expectante.

"Xó!", gritou, gesticulando com as mãos. "Fora daqui! Susquedono! Vai-te embora! Andor!"

Mas o cão não obedeceu. Permaneceu quieto, os olhos castanhos muito abertos, numa piedosa expressão de súplica. Esticou repetidas vezes o pescoço, emitindo o que parecia uma ténue lamúria, como se lhe quisesse dar a ver o cesto. A teimosia intrigou o senhor Manuel, que vislumbrou uma mancha branca no interior do cabaz. Focou melhor os olhos e percebeu que se tratava de uma folha de papel. Pôs a mão dentro do cesto e tirou o papel; era um bilhete de dona Joana a encomendar arroz, tomate, cebolas, alho e um frango, cuja conta saldaria no final do mês, como era hábito.

"Aiche!", exclamou o merceeiro, mirando o cão com pasmo. "Hom'essa! Pode lá ser! Que espantação!" Virou a cabeça para dentro da loja. "O Ermelinda! Anda cá, mulher! Anda cá ver isto, c'um canudo!"

A mulher, uma baleia rosada com um ténue bigode sobre os lábios, aproximou-se enquanto limpava as mãos molhadas ao avental sujo.

"O que é, Manei?"

O merceeiro acenou com o bilhete e apontou para Nilo.

"Ora vê-me tu isto, Ermelinda! A senhora do doutor, camano... a senhora do doutor mandou-me uma besta às compras!"

Ermelinda cerrou as sobrancelhas, intrigada.

"Ó home, 'tás emborrachado ou quê?"

"É como eu te digo, Ermelinda. Mandaram-me um... um lobo às compras, c'um caneco!" Voltou a acenar com o bilhete. "Concho! O para isto! Ora vês? Vês?"

A mulher analisou o bilhete, mirou o cão, pegou no cesto e foi enchê-lo com os produtos solicitados.

"És mesmo um ovo goro, Manei!", disse, voltando-lhe as costas. "Põe-te guicho, home! O que te interessa a ti que mandem um bicho ou uma sopeira, hã? Desde que o doutor pa-gue..."

Nilo voltou nesse dia a casa com o cesto repleto de produtos para o almoço, todos eles criteriosamente seleccionados pela mulher do merceeiro, que achara graça ao cão. A ideia foi tão bem sucedida que daí em diante, mesmo após o regresso de Filomena ao trabalho, passou a ser ele o encarregado das compras da casa do veterinário, fenómeno muito comentado pela vila de Vinhais, todos admirando tamanha "espantação".

VII

O tenente Gutierrez mandou chamar os homens da 27.a companhia. Esperou que eles se aproximassem e ergueu os dois braços, como se pedisse silêncio.

"Hombres de la Legión!", gritou. "Os rojos renderam-se. A vitória é nossa!" Cerrou os punhos.

"'Arriba EspahaaaaaaaV

Um clamor rouco encheu o posto dianteiro e alguns homens atiraram os bonés ao ar. Francisco pegou na sua velha Hotchkiss e largou uma rajada para as nuvens, no que foi imitado pelos legionários. Todos se puseram aos tiros para cima, usando as Mauser checas apreendidas ao inimigo para festejar o triunfo.

Os legionários foram destacados para protecção de vários pontos de Madrid. Depois da campanha da Catalunha, a VII Bandera voltara para o sector da capital, mas, como se esperava a queda da cidade a todo o momento, os legionários ficaram aquartelados num bairro de Mostoles, nos arredores de Madrid, sem autorização para se ausentarem. Francisco sentia saudades de Rosa, mas não havia maneira de abandonar

o posto ou comunicar com ela, pelo que teve de ter paciência e resignar-se. Mais tarde ou mais cedo, a oportunidade surgiria.

Não admira, por isso, que fosse ele um dos mais eufóricos com a notícia da rendição. Para o português o importante não era que o anúncio da rendição de Madrid significava o fim da guerra, mas a possibilidade que se lhe abria de ir ver a sua espanhola. Com os republicanos a entregarem-se, sem dúvida receberia em breve a tão ansiada autorização.

No meio da euforia desencadeada pela notícia dada pelo tenente Gutierrez, o sargento Gomez aproximou-se dos homens e berrou a peito cheio.

"Hombres de la Legión... formar!"

Os legionários ouviram a ordem e de imediato puseram-se em sentido, alinhados segundo a ordem previamente estabelecida no regimento, cada companhia no seu lugar.

"Madrid já celebra esta grande vitória! Mas, para nós, o trabalho não acabou. Os patriotas madrilenos estão a começar a festejar o triunfo e a bandera recebeu ordens para garantir a segurança da população." Consultou o relógio. "Quero toda a gente nos camiões em dez minutos, pronta para partir."

A coluna de legionários arrancou em nove minutos num ambiente de grande excitação. Os homens iam eufóricos e puseram-se a cantar em coro El novio de la muerte, a grande canção que Lola Montes imortalizara na telefonia.

Nadie in el Tercio sabia Quién era aquel legionário, Tan

audaz y temerário Que en La Legión se alisto.

Nadie sabia su historia,

Mas La Legión suponía

Que un grande dolor le mordia

Como un lobo en el corazón."

Foi com os homens a cantarem a plenos pulmões que os camiões de transporte da bandera atravessaram as ruas desertas de Carabanchel e se aproximaram de Madrid, soluçando pelas estradas escavacadas. Quando chegaram diante do rio, porém, todos se calaram ao deparar-se com a grande cidade. As tropas marroquinas controlavam a ponte de Toledo e mandaram-nos parar para verificar a guia de marcha. Depois a coluna recomeçou a andar e entrou em Madrid.

"Para onde vamos?", quis saber Francisco.

"O sargento disse que o nosso trabalho será manter a segurança na Puerta dei Sol."

"O que é isso?"

"Uma praça. E lá que está o Ministério do Interior."

As ruas de Madrid permaneciam desertas, quase como em Barcelona, mas quando os camiões dobraram uma esquina tudo mudou e os legionários depararam-se com a loucura.

Uma imensidão humana enchia a praça; era como se a folia nocturna de Barcelona se repetisse, mas à luz do dia. Os legionários deveriam estar de serviço, mas depressa foram engolidos pelos festejos. Davam-se arribas a Espanha e a Franco, os sinos tocavam a repique e os foguetes estrelejavam no céu, mas eram as melodias que mais faziam vibrar a multidão; entoava-se o la-la-la do hino nacional e cantava-se a Cara ai Sol da Falange, depois o Oriamendi da Comunión Tradicionalista, mas Francisco só juntou a sua voz à da massa humana que enchia a Puerta dei Sol quando escutou as estrofes familiares de La canción dei legionário.

Legionário, legionário

Que te entregas ai luchar Y que ai azar dejas tu suerte Pues tu vida es un azar.

Legionário, legionário

De bravura sin igual,

Si en la guerra bailas la muerte

Tendrás siempre por sudário