Legionário
La Bandera Nacional.
Terminada a canção, milhares de mãos estenderam-se em direcção à torre do relógio do ministério, o austero edifício de tijolo vermelho que dominava a praça da Puerta dei Sol, e um urro a uma só voz perpassou pela multidão.
"Arriba Espanar
Na manhã seguinte, e após uma noite intensa de festejos que se estenderam à Gran Via, à Plaza de la Cibeles e ao Paseo dei Prado, Francisco recebeu por fim a tão aguardada autorização para abandonar o posto e ir descansar. Apanhou o metro para oeste e, na última estação, arranjou boleia num carro de falangistas que seguia para o aeródromo de Getafe. Chegado à povoação, seguiu a pé para a casinha onde antes se havia alojado, o lugar onde Rosa o esperava após meses de ausência.
A casa lá estava, com umas roupas estendidas à janela, a secar. Cruzou o pátio lamacento, por onde deambulavam umas galinhas e uns pintos, e entrou no pequeno edifício. Tremendo de antecipação, agarrou na maçaneta e abriu a porta do quarto.
"Rosa", chamou.
Um gemido estremunhado foi a resposta. Estreitou os olhos para se habituar à escuridão e distinguiu o vulto roliço da sua Rosa, remexendo-se nos lençóis brancos. Olhou melhor e percebeu que o vulto era maior do que inicialmente notara; havia um segundo corpo naquela cama.
Um segundo corpo.
"Francisco", murmurou ela, surpreendida. "Que fazes aqui?"
Francisco sentiu-se paralisado, sem saber o que pensar, o que fazer, o que dizer. A humilhação enrubesceu-lhe as faces e apeteceu-lhe fugir, ir para longe dali, esconder-se num buraco perdido.
Quase se voltou para se ir embora, mas alguma coisa tomou conta dele, uma sombra negra toldou-lhe a alma e abateu-se-lhe sobre os olhos, exactamente como naquele fatídico dia, três anos antes, em Castelo de Paiva, quando partira o pescoço ao Tino.
Tal como então, a fúria cega tomou conta da sua vontade e, sem se controlar, avançou sobre Rosa, agarrou-a pela cabeça e torceu-lhe o pescoço até lhe quebrar a coluna. Sentiu o homem que com ela dormia erguer-se num salto, assustado, e percebeu que não podia deixá-lo fugir. Soltando a mulher, agarrou-o pelo pescoço e também o matou com as mãos.
Deixou os dois corpos estendidos sobre a cama, contorcidos como acrobatas inertes, bonecos quebrados numa fúria de criança. Recuperou a compostura e espreitou para fora do quarto; não viu ninguém. Voltou a cabeça para trás e, antes de fechar a porta, lançou um derradeiro olhar sobre a única mulher que verdadeiramente amara.
"Puta!", exclamou, como se cuspisse.
VIII
Os dedos anafados do juiz, o meritíssimo doutor Alberto Machado, acariciaram a carta, ao de leve, como se ele antecipasse o gozo que lhe daria o momento em que a ia lançar à mesa. Afagou o bigode farfalhudo e analisou os parceiros. O delegado de saúde e futuro director do Hospital de Bragança, doutor Fernando Leite, tinha acabado de jogar e o mesmo fizera o doutor Joaquim Garcia, jovem advogado da terra, bom rapaz mas talvez com ideias demasiado avançadas para o seu gosto. Apenas o veterinário, o circunspecto doutor Luís Afonso, parecia indeciso, analisando com cuidado as opções do seu baralho.
O veterinário levantou uma carta, preparando-se para a lançar sobre a mesa, mas um ganir súbito atrás dele fê-lo suspender o gesto.
"O que é, Nilo?"
O cão ganiu de novo, descontente por ver o dono extrair aquela carta em particular.
"Achas que esta não? Mas olha que é boa..."
Nilo ganiu mais uma vez, como se o pressionasse a devolver a carta ao baralho.
As tardes de sábado na sala de chá da Pensão Alves eram passadas em amena cavaqueira. Os quatro homens distintos da terra juntavam-se ali periodicamente, todos ao borralho, sentados à mesa de jogo com as cartas na mão e um copo de porto a jeito. Na maior parte das vezes optavam pelo brídege, mas desta feita estavam na bisca.
Nilo plantara-se por detrás dos jogadores e espreitava-lhes o jogo; seguia depois para junto do dono e gania quando Luís pegava numa carta que lhe parecia errada. O cão tornara-se um conselheiro precioso do veterinário, mas começava já a suscitar legítimas suspeitas junto dos restantes jogadores.
"Mas afinal quem é que joga aqui?", impacientou-se o juiz. "É você ou é a besta?"
"Sou eu, sou eu", apressou-se a esclarecer Luís.
"Então jogue, homem. Não faça caso do bicho, isto é jogo de gente."
O veterinário hesitou só um instante mais. Nilo já havia espreitado as cartas dos seus parceiros com atenção, o pescoço esticado e as orelhas empinadas, compreendendo o jogo como qualquer outro jogador; e o facto é que se mostrava apreensivo com a possibilidade de o dono jogar a carta que destacara do baralho. Se Nilo gania, era porque a carta que ele tinha na mão não seria a mais aconselhável. Mas o juiz tinha razão, caramba! O jogador era ele, Luís, não era o cão! Além do mais, que imagem daria se recuasse? Ainda iam pensar que quem mandava lá em casa era o animal!
Para não falar no facto de que iriam confirmar que havia ali marosca. Decidindo-se, lançou a carta para a mesa.
"Manilha, hã?", riu-se o juiz. Tirou enfim a carta que os seus dedos saboreavam havia algum tempo e largou-a com aparato sobre as restantes. "Pois eu ataco de trunfo!"
Nilo quase uivou de angústia; percebeu que o seu dono acabara de perder.
"Pronto, Nilo, pronto", murmurou Luís, afagando o pescoço do rafeiro. "É só um jogo, não faz mal."
"Esse cachorro é estranho", observou o juiz enquanto açambarcava as cartas na mesa, espreitando o cão por cima dos óculos redondos. "Põe-se à husma ao meu jogo, como quem me quer escabichar as cartas, e depois rosna quando acha que você vai botar a carta errada e mete-se a gaitar sempre que você perde." Torceu a boca e abanou a cabeça. "Não me parece lá muito católico."
"O Nilo é vivaço", concordou o veterinário.
O advogado, que também mirava o cão, afagou o bigode.
"Você acha que ele era menino para ir lá a casa cuidar-me também das pequenas?"
"Não exageremos", disse Luís. "Mas ele pode ir buscar a ama, se quiser. É só ensinar-lhe onde ela mora e o Nilo vai lá chamá-la."
"Ah, bom!", riu-se o juiz. "Estava a ver que o cachorro também era capaz de dar o leite às pequerruchas aqui do Garcia."
O meritíssimo doutor Machado recolheu as cartas e entre-gou-as a Fernando, a quem cabia a vez de baralhar.
"Se calhar dava para governante", alvitrou o doutor Garcia, homem de uma magreza quase cadavérica, piscando os olhos num tique nervoso. "Sempre fazia melhor figura do que alguns animais que para lá temos em Lisboa." O advogado ergueu o sobrolho e fitou o dono do cão. "Não acha, doutor Afonso?"
O veterinário riu-se.
"Não me puxe pela língua."
"Ó Garcia, não diga disparates", atalhou o doutor Machado, sempre atento às provocações do advogado. "Se não fossem os nossos governantes, onde estaríamos nós?"
"Estaríamos felizes."
O juiz rolou os olhos, como se se enchesse de paciência.
"As suas modernices cegam-no, homem", exclamou. "O regime está a fazer um verdadeiro milagre com este país. Um verdadeiro milagre!"
"Qual milagre?", zombou o doutor Garcia. "O das rosas?"
"O da ordem e do progresso."
"Como na bandeira brasileira?"
"Goze, goze. Mas tente comparar o que o país é agora com o que era há uns dez anos. Não há comparação! Onde antes só se via confusão, agora impera a paz. E, sobretudo, percebe-se que as coisas avançam, percebe? Há um rumo, as finanças estão sólidas, a moeda é forte, constroem-se estradas, temos a campanha do trigo a absorver o desemprego e a combater a nossa dependência alimentar em relação ao estrangeiro... é uma maravilha! Onde é que alguma vez se viu isto neste país?"