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"Isso é só para os ricos."

"Lá está você sempre a falar mal", entoou, condescendente. "Então as estradas são só para os ricos? A ordem é só para os ricos? O progresso é só para os ricos? Olhe, a assistência de saúde é melhor, as pessoas vivem mais tempo, há mais emprego, há mais escolas primárias, fomentou-se a harmonia social..."

"Portanto, vivemos no paraíso", ironizou o doutor Garcia.

"No paraíso, não direi. Mas vivemos melhor do que vivíamos antigamente, isso você não pode negar."

"E o pessoal que o regime manda para o degredo lá em Cabo Verde? Também vive melhor agora?"

O doutor Machado encolheu os ombros.

"Ora, comunistas!", disse com uma ponta de desprezo no tom. "O regime devolveu ao país o orgulho, a ordem e a esperança. Ao pé disso, o que vale um punhado de bota-abaixo que só sabem dizer mal de tudo e de todos?"

"O senhor doutor juiz desvaloriza os atropelos que se sucedem em nome dessa ordem, mas faz mal", insistiu o causídico, procurando puxar a conversa para um terreno que lhe era mais favorável.

"Tem porventura visto as leis que andam para aí a sair?"

"A que leis se está o senhor a referir?", perguntou o juiz, que encarava a legislação quase como propriedade sua.

"Olhe, o novo Código do Processo Civil, por exemplo. O senhor doutor juiz já viu as bestialidades ali contidas?"

"Os textos da lei não contêm bestialidades", sentenciou o doutor Machado.

"Pois este contém. Descobri que agora tenho poder de depósito sobre a minha mulher." Fez um gesto para todos os ocupantes da mesa. "E vocês também. Acham isto normal?"

"É a ordem natural das coisas", disse o juiz.

Luís e Fernando trocaram um olhar. Nos tempos da faculdade eram eles quem se digladiava naquelas conversas políticas, mas agora, sendo ambos os novatos daquele grupo, preferiam permanecer calados, uma vez que se sentiam pouco à vontade para exprimir as suas opiniões políticas em público. Porém, neste ponto da conversa, o veterinário não se conteve.

"Desculpem, mas não estou a perceber", disse, interrompendo o duelo entre juiz e advogado. "O

que é isso de poder de depósito?"

"É uma coisa que existia no tempo da Maria Cachucha e que foi abolida em 1910", explicou o doutor Garcia. "Se a sua mulher por algum motivo sair de casa, você pode fazê-

la regressar de forma compulsiva mandando que ela seja depositada em casa, como se fosse um saco de batatas. Ou seja, aquelas grandessíssimas luminárias que agora mandam em nós decidiram tornar legal o uso da força por parte do marido."

"Acho bem", riu-se o juiz. "Qual é o mal de a mulher levar umas lapadas uma vez por outra, quando é preciso? Ela tem de respeitar o marido, que diabo! E olhe que algumas até estranham se não levam." Assumiu uma expressão pensativa, mergulhando nas reminiscências de magistrado. "Eu uma vez tive o caso de uma mulher que se queixou de que o marido era amaricado porque tinha a mão leve..."

"O senhor doutor juiz, francamente!", protestou o advogado. "O senhor até parece do povo."

"E qual é o mal? O povo é sábio", decretou, o tom peremptório de quem está habituado a emitir acórdãos. "O lugar da mulher é em casa, a criar os filhos e a obedecer ao marido. É

esta a ordem natural das coisas."

"Tudo tem um limite", insistiu o doutor Garcia. "Não estamos na idade das trevas, por amor de Deus! Ou estamos?"

"Estamos num país onde reina a lei e a ordem. E isso é muito melhor do que a bandalheira de antigamente, se quer que lhe diga."

"Não me venha outra vez com essa conversa."

"Desculpe, mas é a verdade. O que nos trouxeram as modernices de que o senhor tanto gosta? O caos, como muito bem sabe! Não tenha dúvidas: para termos ordem é necessário respeitarmos os valores tradicionais. Ora há alguma coisa mais tradicional do que a família? A família é a base da

sociedade e aí todos têm o seu lugar. O homem sustenta e chefia a família, a mulher fica em casa a tratar da lida doméstica e das crianças. Se não for assim, a família desagrega-se, a sociedade desmorona-se e regressamos à confusão do antigamente."

"Isso é a sua opinião. Nem vou discutir o que o senhor acabou de dizer porque temos maneiras diferentes de ver as coisas. Mas eu continuo na minha: a lei que nos rege está a ir longe de mais. E nem sequer falo de política! Limito-me ao direito comum."

"Dê-me exemplos."

"Já lhe dei o exemplo do poder de depósito que acabei de descobrir no novo Código do Processo Civil."

"Só isso?"

"Quer mais? Então veja os poderes dos maridos sobre as mulheres."

O juiz tirou os óculos redondos, colou a lente à boca e expirou, humedecendo-os, e começou a limpá-los com um pano branco.

"Eu cá conheço é a Constituição, que deu às mulheres o direito de voto e o direito de serem eleitas, coisa que as grandes figuraças da república, esses democratas de pacotilha, foram incapazes de lhes dar."

"Caramba!", exclamou o advogado num tom irónico. "O senhor doutor juiz tornou-se agora defensor dos direitos das mulheres?"

"Sempre fui um defensor dos direitos das mulheres, em especial do direito que elas têm de se dedicar à família e contribuir para a harmonia do lar." Terminada a limpeza das lentes, o doutor Machado voltou a encavalitar os óculos no nariz. "Mas falei-lhe no envolvimento das mulheres nas eleições só para lhe lembrar alguns factos que o senhor, com a

sua habitual verborreia reviralhista, tem tendência a esquecer." Ergueu o dedo, sentencioso. "Quem lhes deu o voto foi o Estado Novo!"

"A ditadura só deu o voto às mulheres porque sabe que elas tendem a ter um voto conservador."

"Mas deu."

"Ora! Deu-lhes um bombom e logo a seguir espetou-lhes com o óleo de fígado de bacalhau. O

artigo sobre os poderes dos maridos é, a este propósito, esclarecedor."

"Vejo-o muito preocupado com esse artigo, mas sinceramente não percebo qual o problema..."

"Claro que percebe! É o artigo que diz que uma mulher não pode exercer comércio nem sair do país sem autorização do marido. E há o outro que prevê que um homem pode anular um casamento se descobrir que a mulher não casou virgem..."

"O homem, isso é velho!", exclamou o juiz com um trejeito condescendente. "E então?"

"O senhor doutor juiz acha normal?"

O doutor Machado encolheu os ombros.

"Não acho mal."

"Mas como pode o senhor doutor juiz dizer uma coisa dessas? Isto é uma coisa de... de trogloditas! Além disso, o artigo é uma aberração jurídica."

"Não vejo porquê."

"Porque não prevê a reciprocidade. Se uma mulher descobrir que um homem não casou virgem, não pode anular o casamento. Mas, na situação inversa, ele pode. Acha que isto faz algum sentido?"

"Se o homem casasse virgem é que a mulher teria razões para anular o casamento", gracejou o juiz. "Era sacrafineiro, certamente."

O médico, que permanecia silencioso, acabou de baralhar as cartas e entregou-as a Luís, a quem cabia dá-las. O veterinário fervia por se pôr ao lado do advogado, mas foi-se calando enquanto pôde. Até que foi vencido pela curiosidade.

"É possível haver sentenças diferentes para crimes, conforme o seu autor seja homem ou mulher?", perguntou Luís, metendo-se de novo na conversa.

"Claro que sim", devolveu o advogado. "O próprio Código Penal o prevê."