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"A sério?"

"Artigo 461", recitou o doutor Garcia, como se estivesse na barra do tribunal. "O marido pode violar a correspondência da esposa. Mas ela não pode violar a correspondência do marido."

"Muito útil", observou o juiz, pegando nas cartas que Luís já lhe atirara para a frente.

"Tem-me feito um jeitaço lá em casa."

O advogado ignorou o comentário.

"E não é tudo", acrescentou. "O mesmo artigo 461 prevê pena branda para o marido que assassine a mulher caso a apanhe em situação de flagrante adultério. Mas já o contrário não acontece. Se a mulher apanhar o marido em flagrante adultério e o matar, a pena será pesada."

"A cada um o seu lugar", insistiu o juiz, já a olhar para as cartas ordenadas nas suas mãos, os trunfos à esquerda, os outros naipes à direita. "A mulher é a fada do lar e é assim que se deve comportar." Mantinha a cara voltada para baixo e os óculos redondos na ponta do nariz. Ergueu os olhos castanhos na direcção de Luís, espreitando-o por cima dos óculos. "Não concorda comigo, doutor Afonso?"

Luís terminara de dar as cartas e estudava o seu jogo.

"Acho que o doutor Garcia tem razão", disse, deslizando a mão para voltar a afagar o pêlo de Nilo. "No que diz respeito a governar, até o meu cão fazia melhor figura."

Fez-se um súbito silêncio e o médico, que optara por não se meter na conversa e permanecera calado, aproveitou para afinar a voz.

"Meus senhores", disse Fernando. "Vamos jogar?"

A primeira carta foi atirada à mesa e depressa se seguiram outras. A meio da partida, o veterinário notou, sem prestar muita atenção, que um dos seus adversários havia regressado ao seu velho hábito de anotar num papel as cartas que já tinham saído, de modo a melhor controlar os trunfos que ainda restavam em jogo. O que Luís não percebeu, porque dali não conseguia ver, é que aquelas anotações não diziam, na verdade, respeito à partida.

Eram um registo do que se dissera naquela conversa.

IX

O vulto procurou esgueirar-se por entre os fiéis, mas era demasiado corpulento para ser capaz de efectuar movimentos ágeis; parecia um gorila a tentar deambular por entre um canteiro de flores.

Apesar dos seus melhores esforços, a verdade é que Francisco Latino não conseguiu abrir caminho com a subtileza aconselhável, acabando por empurrar quase toda a gente que lhe apareceu pela frente. Ao cabo de alguns esforços falhados desistiu de tentar a delicadeza e assumiu-se como um paquiderme em progressão.

"Ai", gemeu uma senhora de negro que empurrara brutalmente pelas costas.

"Cuidado", implorou um velho, levando com um ombro maciço na cabeça.

"Credo!"

Alheio às queixas que ia deixando como um rasto, Francisco rompeu por entre os crentes que acompanhavam a missa em pé, numa das alas da grande Igreja do Sameiro, e só parou quando chegou aos bancos e ficou com a vista desimpedida para as primeiras filas. O padre fazia a homilia, a voz a ecoar cavada pelo santuário, e a atenção do intruso deslizou pelas cabeças alinhadas lado a lado até se fixar numa nuca que se encontrava a meio da terceira fila.

"Senhora", sussurrou.

A guerra civil tinha acabado e Francisco aproveitara uma licença na Legião e metera-se no comboio para visitar o seu país. Partira em segredo, nunca assumindo a sua verdadeira identidade; mantinha sempre presente que poderia ainda ser procurado pela justiça portuguesa e sabia que todo o cuidado era pouco. Além do mais, é preciso não o esquecer, Francisco Rodrigues morrera no momento em que se alistara na Legião; naquele momento chamava-se Francisco Latino e a última coisa que queria era ressuscitar o passado.

Nesta viagem da saudade, a sua prioridade era rever a família. Não se tratava, é certo, verdadeiramente de uma família. Francisco sabia que fora adoptado e apenas dona Beatriz o fizera sentir-se de facto desejado; não lhe dera educação, era uma realidade, mas talvez isso se devesse mais à natural relutância de Francisco em estudar do que à vontade da mãe adoptiva de usar os seus consideráveis músculos para a ajudar nos trabalhos pesados de casa ou da loja. Ou pelo menos era isso o que ele gostava de pensar.

Quando dona Beatriz morreu, o rapaz ficou entregue à irmã mais velha, apesar de a relação entre ambos nunca ter sido muito estreita. Beatriz era a sua verdadeira família, Amélia uma pobre substituta. Mas era o que tinha. À outra irmã, Joana, poucas vezes lhe pusera os olhos em cima, até porque a rapariga cedo fora para casa do padrinho e apenas após a morte da mãe se haviam aproximado, já em Penafiel.

Vendo Amélia sentada na terceira fila, Francisco suspirou. A irmã adoptiva não estava à altura de dona Beatriz, sabia-o. Mas era o mais próximo que tinha do conceito de família.

Como ele ansiava por uma família! Toda a sua infância se concentrava agora naquela mulher. Se ela o enjeitasse, nada mais lhe restaria no mundo.

Alheia aos olhos que a espreitavam lá atrás, Amélia virou a cara para a direita e inclinou-se para o lado, subitamente ocupada com algo que Francisco não descortinava no local onde se encontrava. Intrigado, mudou de posição e, já com um melhor ângulo de visão, percebeu que a irmã adoptiva ajeitava a roupa de uma criança muito pequena, devia ter uns dois anos. Pelos vistos, era um novo filho. Nos lugares ao lado dela sentavam-se as outras crianças, que ele já conhecia, embora estivessem agora maiores. As duas meninas pareciam--lhe diferentes, mais alongadas, mas conseguiu reconhecer António, o mais velho, já um rapazinho muito bem aperaltado, franzino e tenro. Um copinho de leite, pensou com um sorriso velhaco; não daria para legionário.

Quando a missa acabou e os fiéis dispersaram, Francisco seguiu a irmã a uma distância prudente na descida pelo jardim do Sameiro e só se deu a ver já a uns passos de casa dela.

"Senhora", chamou. "Senhora."

Amélia olhou para trás e quase se assustou ao reconhecê-lo.

"Chico!"

"Como está, senhora?"

A irmã olhou em redor, quase aflita, preocupada com a possibilidade de serem vistos.

Na verdade, muita gente olhava. A missa tinha acabado e a multidão descia ainda pela rua.

"O que estás aqui a fazer?" Deu meia volta e dirigiu-se apressadamente à porta de casa com a chave na mão. "Anda, vamos entrar."

Abriu a porta e quase empurrou Francisco para dentro. Depois ajudou os filhos e fechou a porta.

Já tranquilizada por estarem resguardados da curiosidade alheia, pousou os olhos no irmão adoptivo e estudou-o dos pés à cabeça.

"Meu Deus!", exclamou. "Estás ainda mais forte! Como é possível?" Abraçou-o. "Graças a Deus que te vejo de saúde. Tenho andado tão ralada, nem imaginas!" Afastou-se e olhou-o nos olhos, como se buscasse confirmação. "Estás bem, não estás?"

"Sim, senhora."

"Como... como tens feito tu para fugir à... enfim, tu sabes."

"Fui para Espanha, senhora. Tenho vivido em Espanha."

Amélia considerou a revelação por um instante e logo um sorriso se lhe desenhou nos lábios.

"Esperto", disse, colando-lhe o indicador à testa. "Afinal tu és esperto. Com que então em Espanha?" Riu-se. "Aí é que ninguém te encontra. Diabo do rapaz que me saiu mais esperto do que eu pensava. A mãe é que ficaria orgulhosa."

Ao ouvir a referência a dona Beatriz, o rosto duro de Francisco abriu-se num sorriso quase infantil.

"Pois, lá eles não me apanham."

"Mas tens vivido de quê? As coisas em Espanha não têm andado nada boas..."

"Fui para a tropa, senhora."

Amélia colou a mão à boca, quase assustada.