Luís não queria saber de Natália nenhuma, mas descobriu uma óbvia utilidade naquele livro. Então elas gostam de palavras românticas, ora é? Ouvem Camões e ficam logo caidinhas, ora ficam? Bastam umas palavras doces e tumba!, ora tumba?
Agarrou-se aos poemas com a mesma genica com que se agarrava ao arroz-doce da tia e passou o resto das férias a decorar os versos românticos; haveria de ter toda a Lírica na ponta da língua e, convenceu-se, se isso não desferisse o golpe fatal, então mais nada o poderia fazer.
Veio a passagem do ano e entrou em 1930 preso ao livro de poesia que recebera pelo Natal, acreditando ter enfim encontrado a arma secreta que tudo decidiria.
Seria Camões a chave do coração de Amélia.
VII
Os olhos saltitaram-lhe de alegria quando, numa madrugada gelada de Janeiro, já de regresso a Bragança e no recomeço das aulas, a viu descer a rua para o encontro no ponto habitual. Vinha linda, mais bonita do que era costume, as madeixas douradas do cabelo a fulgirem na luz baixa da manhã, um sorriso gaiato a bailar-lhe nos lábios, o corpo meneando-se como o de uma gata. Ou talvez fosse apenas a imaginação a pregar-lhe uma partida; se calhar Amélia vinha bonita como sempre, mas eram as saudades que a tornavam tão resplandecente.
Teve nesse instante ganas de a abraçar, de a esmagar contra o peito, exultante por ter terminado a longa provação das férias, mas conseguiu conter o ímpeto. Desceram pela rua a saltarinhar, alheios a tudo. Os transeuntes deslizavam pelo passeio como espectros, não passavam de leves sombras que se desvaneciam na neblina. Luís apenas tinha olhos para a sua amada, a angústia do Natal longe de Amélia substituída pela excitação de estar enfim com ela, como se passasse da angústia à excitação com a facilidade de quem vem do frio da rua e num instante se instala no calor do borralho.
"Então?", perguntou ele, lutando por esconder a excitação. "Essas férias?"
Amélia encolheu os ombros, mas manteve o sorriso que lhe ateava o olhar.
"Foram normais. E as tuas?"
"Normais também."
"O que fizeste?"
"Fui aos Cerejais passar o Natal. E estudei, claro."
Ela lançou-lhe uma expressão maliciosa.
"Tu? A estudar?"
"Sim, claro. Porquê?"
"Por nada. Não tens ar de marrão."
"Nem sou. Mas estudo."
"Ah, bom."
"E leio poesia."
Amélia torceu os lábios e espreitou-o de esguelha, céptica.
"Estás a brincar."
"Juro. Queres ouvir?"
"Claro."
Luís fez hmm-htnm com a garganta, fixou-a com atenção e começou a recitar.
Ondados fios de ouro reluzente, Que, agora da mão bela recolhidos, Agora sobre as rosas estendidos, Fazeis que sua beleza se acrescente; Olhos, que vos moveis tão docemente, Em mil divinos raios incendidos, Se de cá me levais alma e sentidos, Que fora, se de vós não fora ausente?
Amélia escutou-o muito atenta, o olhar de caramelo a beber as palavras, a respiração enlevada pela doçura melancólica dos versos, o rosto banhado pela perfeição que o poema derramava como gotas douradas de mel.
Quando Luís se calou, ela demorou uns instantes a reagir.
"Ena, não te sabia poeta!"
O rapaz sorriu.
"Bem, os poemas não são meus", disse em jeito de confissão. "São de Camões."
"Bem bonitos. Passaste o Natal a ler poesia?"
"Sim."
Um cintilar fascinado perpassou-lhe pelo olhar.
"Estou... surpreendida."
"Porquê? O que achavas tu que eu fazia nas férias?"
"Ora! Julguei que fosses jogar à trincassuada!"
O rapaz parou e pôs as mãos na cintura, fingindo-se ofendido.
"Lá vem outra vez essa conversa da trincassuada. Mas por quem me toma a menina?"
Tentando libertar-se dos efeitos hipnóticos dos versos que a tinham encantado, Amélia soltou uma gargalhada.
"Por um lafardo!"
"Eu? Um lafardo?"
"Sim. Só os lafardos jogam à trincassuada."
Retomaram a marcha.
"Pois, pois. E qual dos lafardos da trincassuada no liceu era mais bonito?"
Ela voltou a rir-se.
"Para que queres saber isso?"
"Ora, por nada. Tenho curiosidade."
Amélia fez um ar pensativo.
"Quem era o mais bonito? Hmm... deixa cá ver. Eu acho que era... era o... o Gonçalves!"
"Quem?"
Luís fez um gesto como de quem a ia atacar e ela, com uma gargalhada, deu um salto para trás e escapou-se.
"O Gonçalves!"
Começaram a correr pela rua, Amélia a fugir numa cascalhada de risos, ele atrás fingindo uma fúria. A rapariga escapulia-se com agilidade, apesar de trazer os cadernos apertados entre os braços, mas não tinha hipóteses perante a passada rápida e possante de Luís, que, sem se esforçar muito, deixando embora prolongar o delicioso jogo, adiando a captura pelo tempo que lhe pareceu razoável, acabou por alcançá-la.
"Ora diz lá outra vez", sussurrou-lhe ele ao ouvido enquanto a apertava entre os braços.
"Quem era o mais bonito?"
"O Gonçalves!"
Ele apertou-a com mais força.
"Quem?"
"Ai, bruto!", gemeu ela, cerrando as sobrancelhas. "Larga-me! Estás a magoar-me. Para poeta, és uma besta."
Luís aliviou o aperto, mas manteve-a presa entre os braços e colou-lhe os lábios ao ouvido.
Ditoso seja aquele que somente Se queixa de amorosas esquivanças; Pois por elas não perde as esperanças De poder nalgum tempo ser contente.
"Hmm", ronronou a rapariga, rendendo-se à graciosa harmonia das palavras. "Que lindo."
"Então diz lá: quem era o mais bonito da trincassuada?"
"Hmm?"
"Quem?"
Amélia inclinou ligeiramente a cabeça para trás e fitou-o nos olhos. O sorriso maroto evaporou-se-lhe da boca e o rosto perfeito tornou-se meigo e doce, tão langoroso e suave como a resposta que soprou num murmúrio ardente.
"Tu."
Pela primeira vez tão perto um do outro, Luís cheirou-lhe o perfume de rosas e ela sentiu-lhe o cheiro a rapaz que já é quase homem. Os olhos de mel de Amélia fundiram-se nos castanhos dele, as respirações enlaçadas num único fôlego, os corações inflamando-se de ardor, ambos perscrutando o rosto do outro com a intensidade de quem sabe que encontrou o amor.
Incapaz de resistir, Luís inclinou-se devagar sobre ela. Foi apenas um movimento ligeiro, mas o suficiente para lhe tocar os lábios aveludados, primeiro ao de leve, como quem prova um doce, depois com sofreguidão, a gula tornada fome; eram pétalas açucaradas, gomos deliciosos que se abriam como uma flor diante do Sol. O dia fez-se noite e ambos se perderam para lá do horizonte, num paraíso de sensações e sentimentos, afogados um no outro, derretendo-se num amor incandescente. Era como se nada mais existisse no mundo; apenas havia o outro e aquele instante em que os lábios se colaram e os dois se fundiram num só.
O primeiro beijo.
VIII
"Acho que andam a pairar de nós", observou Amélia duas semanas mais tarde, logo que deu com Luís à sua espera na esquina da rua para a acompanhar no habitual percurso enamorado até ao liceu.
O rapaz lançou um olhar inquieto pelo passeio que ela percorrera, como se tentasse descortinar se alguém a seguira.
"Quem? A tua mãe?"
"As minhas colegas."
Luís sorriu de alívio.
"Ah, essas requeijiteiras?" Encolheu os ombros, indiferente. "Estou-me bem ralando."
"Mas não estou eu."
Puseram-se os dois a caminhar rua fora, ziguezagueando por entre as poças de água abertas pela chuva que caíra durante a noite, ele de mãos mergulhadas nos bolsos para aquecer os dedos gelados, ela de luvas brancas de lã macia.