"Para a tropa? Estiveste na guerra?"
"Sim, senhora."
Ela voltou a examiná-lo de alto a baixo, desta vez à procura de alguma anomalia, de qualquer sinal de que estivesse estropiado, de algo que o denunciasse como eventual vítima.
"E... e estás bem? Não te aconteceu nada?"
Pousou a mão ao fundo das costas, indicando o local onde havia sido baleado em Badajoz.
"Fui atingido aqui na anca por duas balas. Mas não custou nada, agora estou bem."
"Ah, coitado! Foste ferido!"
"Sim, mas não há problema", insistiu ele. "Para matar um homem é preciso atingi-lo na cabeça.
Se for no corpo é mais difícil acabar com ele."
Amélia pegou Francisco pelo braço e puxou-o, encaminhando-se pelo corredor para as escadas.
"Dispenso esses pormenores", disse. "Anda daí, vem comer alguma coisa." Pegou no filho mais pequeno e puxou-o para o colo. "O Mário foi visitar a irmã, que está doente, e só deve voltar depois do almoço."
"O senhor capitão está bem?"
"Sim, vai andando. Mas vai ser um problema quando ele te vir."
"Porquê, senhora?"
Iam já a meio das escadas, Amélia a arrebanhar as crianças e com o mais pequeno nos braços, quando parou e olhou para trás.
"Chico, tu mataste-lhe o caseiro", disse, muito séria. "Isso é coisa que não se esquece."
De facto, o capitão Branco não esquecera. Quando ao início da tarde entrou em casa e deu com Francisco sentado na sala, estacou por um longo momento no topo das escadas, o rosto pálido, o corpo crispado, os olhos a dançarem entre os dois irmãos.
"O que está ele aqui a fazer?", perguntou, muito tenso.
Francisco e Amélia puseram-se de pé, na expectativa.
"Veio visitar-me."
O marido permaneceu um instante calado, a avaliar a inesperada situação.
"Ele matou o Tino", disse enfim. "Eu conheço o Tino desde criança. A família dele foi viver para a nossa quinta no tempo dos meus pais. Eu não posso ter o assassino do Tino em minha casa. Na verdade, tenho até o dever de o denunciar à polícia."
"O Chico é meu irmão."
"Adoptivo."
"Não interessa. A minha mãe acolheu-o na família. Não posso entregar o Chico à polícia, isso está fora de questão."
"Eu compreendo", cedeu o capitão. "Mas ele não pode ficar na nossa casa. Uma coisa dessas não é aceitável."
"Eu já me vou embora", disse Francisco, pegando no casaco.
O dono da casa lançou-lhe um olhar irritado.
"Vais, sim senhor", disse, fitando-o com uma expressão penetrante. "Mas antes explica-me uma coisa que eu ainda não percebi: porque mataste o Tino? Que mal te fez ele para merecer que lhe torcesses o pescoço como fazias às galinhas?"
O visitante baixou a cabeça, sem resposta. Na verdade, tinha uma resposta, mas não podia dá-la. Percebendo o dilema, a irmã veio em seu socorro.
"Foi um acidente."
"Um acidente?" O capitão ergueu a voz, quase alterado. "O Tino tinha o pescoço partido, Amélia! Ninguém parte o pescoço a alguém por... por acidente! Além do mais, mesmo que fosse um acidente, há uma coisa que não está explicada: por que motivo se agarrou o teu irmão ao pescoço do Tino?"
Era uma boa pergunta.
"Foi para me defender", disse a mulher.
O capitão fez um esgar de perplexidade.
"Defender? Defender de quê? Que história é essa?"
Amélia percebeu que tinha entrado no pior caminho possíveclass="underline" o das explicações com a introdução de dados novos. Quanto mais respostas desse, mais perguntas suscitaria. Mas o facto é que embarcara já naquele rumo e tratava-se de um caminho sem retorno. Abrira pistas que teria de fechar, sob pena de suscitar desconfianças. Percebeu que precisava de ser convincente e coerente, e sobretudo de sair daquele terreno minado o mais depressa possível.
"Ele defendeu-me do Tino."
"Mas o que te fez o Tino?"
A mulher não queria difamar a vítima, mas tomou consciência de que não tinha agora qualquer alternativa.
"Ele queria dar-se a... a certas liberdades comigo", mentiu.
"O quê?"
"Pois, foi isso. O Chico defendeu-me e a coisa correu mal."
O capitão cravou os olhos na mulher, atónito.
"O Tino queria dar-se a liberdades contigo?"
Amélia fugiu com o olhar, descendo-o para o soalho da sala; não conseguia mentir a olhar nos olhos, pelo que preferiu simular vergonha.
"Sim."
O marido abanou a cabeça.
"Não acredito. O Tino não faria isso."
"Então não acredites", retorquiu ela com um encolher de ombros.
O capitão comprimiu os lábios.
"E porque não me contaste essa história logo? Por que razão só agora me dizes isso?"
Ding dong.
O toque na campainha veio em socorro de Amélia.
"É o senhor Cunha com o mel", disse o capitão, voltando a cabeça para trás. "O
António! Vai lá abrir a porta!"
O filho mais velho desceu as escadas num tropel, vindo do piso superior, e continuou até ao rés-do-chão.
A interrupção acalmou um pouco o capitão. Puxou de uma cadeira e sentou-se com um suspiro.
"Ainda não percebi por que motivo não me contaste na altura que o Tino tinha sido incorrecto contigo", murmurou em tom fatigado, retomando o fio à meada. "Se bem me lembro, disseste à polícia que não estavas presente quando o Tino morreu. Como é que agora me dizes o contrário?"
A pausa oferecida pelo toque da campainha dera a Amélia o tempo necessário para improvisar uma explicação plausível.
"Foi para não angustiar ainda mais a família dele. Já viste o que sentiriam se eu dissesse isso naquele momento? Achei melhor calar-me, não adiantava nada estar a manchar a me-mória do Tino. O que estava feito estava feito. Já não tinha remédio."
O capitão voltou a respirar fundo.
"Tens razão", rendeu-se. "Se calhar fizeste bem. Mas devias ter-me contado pelo menos a mim."
A mulher quase suspirou de alívio. Fora complicado, mas tinha conseguido escapar ao campo minado.
"O meu capitão dá licença?"
A voz veio das escadas e os três olharam naquela direcção. Um homem fardado encarava-os da ombreira da porta e as cabeças de dois outros emergiram das escadas. Eram polícias e os dois de trás vinham armados com caçadeiras.
O capitão levantou-se, surpreendido.
"Faz favor?"
"Eu sou o tenente Lopes, meu capitão", disse, fazendo continência. O olhar do polícia desviou-se para Francisco, que
assumira uma postura de alerta. "Recebemos na esquadra a denúncia de um cidadão que disse ter visto um foragido à justiça a entrar na sua casa. Como deve compreender, estamos aqui no cumprimento do dever e viemos dar ordem de prisão ao suspeito em causa."
Todos os olhos pousaram acto contínuo em Francisco. O legionário encarou os polícias, avaliando a situação. Poderia saltar em frente e dar cabo deles, mas era provável que levasse com um tiro de caçadeira a um metro de distância. Era capaz de doer, considerou, eliminando de imediato essa hipótese. A alternativa era entregar-se.
Ou fugir.
"É melhor ir com eles", aconselhou o capitão, preocupado em evitar um confronto violento em sua casa e diante da mulher e dos filhos.
Francisco recuou um passo e outro ainda, sempre a encarar os recém-chegados, o corpo tenso à espera da explosão, a mente a fervilhar em busca de uma saída.
Os polícias avançaram, as caçadeiras em riste.
"Tenha calma", disse o tenente, adiantando-se aos outros. "Acompanhe-nos à esquadra, se faz favor."
Mas Francisco tomara a sua decisão e não estava disposto a entregar-se. Não fugira de Portugal, não se alistara na Legião Estrangeira, não sobrevivera a uma guerra sangrenta para se render assim, sem mais nem menos, como um cobarde. Não, isso ele não faria.