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O tenente chegou-se ao pé de Francisco para consumar a prisão, mas, com um movimento rápido, viu-se agarrado pela cabeça e pelo tronco e virado ao contrário, preso naqueles braços poderosos como se o tivessem de repente metido num colete-de-forças, o rosto voltado para os seus subordinados.

"Quietos!", rugiu Francisco, transfigurando-se. Já não era o submisso e dócil irmão adoptivo de Amélia, mas o temível legionário e o frio assassino de Tino. "Nem mais um passo!"

O capitão Branco ainda considerou por instantes a possibilidade de intervir, mas de imediato percebeu que a sua prioridade era proteger a mulher e os filhos. Amélia acompanhava o confronto com uma expressão horrorizada, o filho de dois anos abraçado à perna, e o marido agarrou-se a ambos e puxou-os para o corredor, afastando-os do local do confronto.

O assunto ficou entregue aos guardas, que não sabiam o que fazer. Tinham as caçadeiras apontadas, embora na mira tivesse deixado de estar Francisco e aparecesse nesse momento o seu superior hierárquico, cujo corpo era usado como um escudo. O legionário tentou tirar a pistola da cintura do refém, mas o homem debateu-se e a arma tombou no chão. O tenente tinha o tronco e os braços imobilizados por aqueles braços possantes e duros como aço, mas com um movimento da perna direita conseguiu pontapear a pistola para a frente.

"Assim é pior", disse o tenente Lopes, tentando tirar vantagem do efeito de a arma estar agora fora do alcance do seu captor. "É melhor o senhor acompanhar-nos à esquadra. Vai ver que tudo se resolverá a bem, não é preciso nada disto."

Francisco não era tolo e ignorou as palavras conciliadoras; era já demasiado vivido para ir naquele conto. Vendo-se sem hipóteses de alcançar a pistola, readaptou-se à situação. Sempre a prender o tenente e a usá-lo como escudo, recuou devagar até as costas tocarem na porta traseira da casa. Nesse instante, ergueu o tenente e lançou-o contra os outros dois polícias, como se o guarda não passasse de um fardo de palha, e virou-se bruscamente, abriu a porta e saltou pelas escadas a grande velocidade, quase se estatelando no quintal.

"Alto!"

O fugitivo reequilibrou-se e correu como um desvairado pelo rectângulo de terreno, por entre as macieiras e a horta, os ramos de verdura fustigando-o na cara mas sempre correndo como se estivesse a fazer uma carga, como se se lançasse de novo sobre as Puertas de la Trinidad, como se gritasse "viva a morte!", só que agora não corria em direcção a ela. Fugia dela.

Paw.

Um tiro rasgou o ar, mas Francisco não ouviu o silvo da bala. Deviam ter disparado para o ar, presumiu. Pela experiência sabia que quando se ouve o disparo é porque não se foi atingido e quando se é atingido nem se ouve o disparo, a bala é mais rápida que o som, primeiro ocorre o impacto, depois é que se ouve a detonação.

Sempre a correr, arrependeu-se de não ter tentado recuperar a pistola do tenente, lamentou não ter com ele a velha metralhadora da Legião. Ah, o que a Hotchkiss não faria àqueles imbecis!

Chegou ao muro do fundo do quintal e abriu o pequeno portão salpicado de ferrugem. O ferro chiou de preguiça. Quando pôs o pé na rua, no entanto, imobilizou-se.

"Onde vais, malandro?"

Em redor tinha três caçadeiras apontadas para ele; uma à esquerda, na descida da rua, outra em frente, a terceira à direita, na subida. Atrás ficava o muro e ouvia já os passos dos primeiros polícias a cruzarem o quintal. Estava encurralado.

Devagar, percebendo que já não dispunha de opções, endireitou-se e ergueu os braços.

Havia sido apanhado.

Com a testa alagada de suor, Luís inspeccionou o carabelho da adega. O Verão tinha chegado, quente e abafado, e a fechadura de madeira da porta que dava para o compartimento dos vinhos parecia ter apodrecido. Toda a zona entre Bragança e a fronteira galega, o espaço selvagem onde se encerrava Vinhais, tornara-se conhecida por Terra Fria, mas o ar estival revelava-se a brutal excepção. A amplitude térmica era de tal modo radical que, devido à dilatação, nem os carabelhos se aguentavam.

O veterinário endireitou-se, esfregou o queixo e ponderou o problema.

"O Nilo", disse, dirigindo-se ao cão que o observava com curiosidade. O rafeiro ergueu as orelhas, imediatamente alerta. "Vai à cozinha buscar a caixa das ferramentas." O cão fez um movimento com a cabeça e ganiu de mansinho, como que a pedir um esclarecimento. "A caixa de ferramentas", quase soletrou Luís. Mostrou com as mãos o tamanho da caixa e depois fez o gesto de martelar. "Ferramentas."

Nilo arregalou os olhos, como se tivesse entendido, e partiu em velocidade.

"O sô'tor", chamou uma voz.

Luís voltou a cabeça e viu o serra-cancelas aproximar-se.

"Olá, Ti Manei. Então?"

O pastor tirou o chapéu, respirou fundo e limpou a transpiração.

"Puf! Vai um calor do arco-da-velha. Nossa Senhora!"

"Lá diz o povo, Ti Manei", sorriu Luís. "Aqui em Trás-os-Montes, nove meses de Inverno e três de inferno."

"Antão não é, sô'tor?"

Luís limpou as mãos ao rabo das calças.

"Como vão as coisas consigo?"

O serra-cancelas mirou o veterinário, cabisbaixo.

"Aiche! Vão mal, sô'tor."

"Então, Ti Manei?"

"É a minha vaca mais gorda, sô'tor. A Rosinha. Recusa-se a comer."

"Ena, homem! Será que se decidiu a fazer dieta, a esperta-lhona? Se calhar tem um boi na mira e quer pôr-se bonita, hã?"

"Não brinque, sô'tor. O caso é sério."

"Não se aflija, homem. Onde está o seu gado?"

"Anda no monte, sô'tor. Botei as ovelhas acarradas à sombra, por causa do calor, mas elas só querem ceibar-se."

"E a vaca também?"

"Não, sô'tor. Ela anda muito murchita, coitadinha, assim toda afinhada, até faz espécie.

Ademais, o abarro está-lhe a sair a modos que aguado. O aspeito dela não é nada bô, de maneira que a deixei deitada ao lameiro, no repouso."

"Hmm, está bem. Vou só arranjar aqui este carabelho e depois já lá vou vê-la, está bem?"

O homem hesitou.

"Já agora, sô'tor. Eu não queria ceranganhar, mas também não ando lá muito católico."

"Então?"

O serra-cancelas assentou a mão na região lombar e esboçou um esgar dorido.

"Tenho aqui uma moléstia nas costas e mal consigo andar no cangaço. Até parece que me aboncaram, caramba! Será que o sô'tor me poderia também botar os olhos nisto?"

Luís ergueu as sobrancelhas.

"Calculo que você saiba que eu sou veterinário..." O rosto abriu-se num sorriso. "Bem, suponho que não faz mal. Se vou a sua casa ver a vaca, também o posso ver a si, que diabo.

Sempre despacho dois animais de uma só vez."

"Deus lhe pague, sô'tor", agradeceu o serra-cancelas, voltando a pôr o chapéu na cabeça.

Ia despedir-se mas bateu com a palma da mão na testa; havia algo mais para dizer. "O

sô'tor, óquaisque já não m'alembrava, c'um catano! O Toino dos Correios passou por mim há bocadinho, estava eu a abantar para aqui, e pôs-se à cumbersa comigo. Pediu-me para lhe dizer que tem lá uma cartita para si."

"Uma carta nos Correios para mim?"

"Sim, sô'tor. Chegou à pela manhã."

Luís decidiu alterar o plano que havia traçado; tinha curiosidade de ler a carta, podiam ser novidades dos Cerejais ou, o que seria ainda mais importante, notícias de Penafiel.

Desde que viera para Vinhais que alimentava um sentimento ambivalente: queria esquecer Amélia mas receava que ela o esquecesse. Sabia que não havia futuro para eles, embora mantivesse uma esperança secreta; ansiava por ir a Penafiel vê-la, mas temia fazê-lo e, das duas vezes que Joana lá fora