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em visita, decidira não a acompanhar. Amélia dera à luz mais um filho e custava-lhe ver aquele novo fruto do casamento, sobretudo porque fora produzido já depois de a ter reencontrado.

"É a cara chapada do Mário", dissera-lhe Joana com um sorriso inocente quando viera de Penafiel logo após o nascimento da criança.

Isso doera.

Na verdade, Luís não sabia o que queria. Ou melhor, sabia. Sabia que queria Amélia, sempre quisera e sempre ia querer. O problema é que ela estava fora do seu alcance, a mente dizia-lhe que para sempre, o coração respondia-lhe que por enquanto. Desorientado por aquele conflito interior, refugiava-se no trabalho e convencia-se a si mesmo de que atrás do tempo viria uma resposta.

E se a resposta viesse na carta que o Ti Manei lhe anunciara? Quando chegava correio, Luís mal continha a ansiedade, tão grandes eram as suas expectativas de uma novidade de Penafiel que, como um maravilhoso passe de mágica, tudo viesse a mudar. Mas seguia-se a inevitável decepção. Ou as cartas não eram de Penafiel, ou se eram não passavam de missivas de Amélia para Joana, que se mostravam desapontadoramente mundanas; davam-lhe notícias da terra, dos filhos e de pouco mais.

Talvez a única coisa de facto reveladora fosse a fórmula que a sua antiga namorada usava para a despedida; escrevia "dá um beijo muito afectuoso ao teu marido" e Luís sabia que aquelas palavras lacónicas encobriam um ardor ferido e amordaçado.

Com um gesto impaciente, atirou o martelo para a caixa das ferramentas e resolveu deixar o conserto do carabelho para mais tarde; a fechadura da adega podia decerto esperar mais uma hora.

Saber que correio seria aquele que o serra-cancelas lhe anunciara parecia-lhe bem mais importante naquele momento.

Deixou a caixa trazida por Nilo junto à porta, aguardando o seu regresso para retomar o trabalho, e subiu ao quarto.

"Joana, vou aos correios", anunciou, abrindo a gaveta à procura de roupa limpa.

"Chegou uma carta."

Sentada à mesinha de costura, a mulher pregava os botões de uma camisa de Verão.

"Levas o Nilo?"

"Sim."

"Mas eu preciso dele para ir à mercearia buscar umas alheiras."

"Eu vou lá."

Mudou de camisa, fez sinal ao cão de que o seguisse e desceu até ao centro da vila.

O empregado dos Correios, António, estava sentado ao balcão a separar encomendas quando viu o veterinário e o seu inseparável cachorro entrarem.

"Ora viva!"

"Olá, senhor doutor", cumprimentou António, voltando-se para um cacifo onde se encontrava correspondência amontoada. "O Ti Manei falou consigo, ora é?"

"Sim, homem. Tem aí uma carta para mim?"

O empregado tirou um envelope do molho e analisou o espaço do remetente.

"Tenho, senhor doutor." Estendeu-lhe a carta. "Aqui está."

Com um gesto sôfrego, Luís pegou no sobrescrito e, a esperança a encher-lhe de novo o peito, reconheceu o traço nervoso de Amélia impresso na textura lisa do papel.

"Você é um barbino, Toino", repreendeu-o amigavelmente. "Eu já lhe tinha pedido que me entregasse imediatamente

em casa todo o correio de Penafiel. É por causa da minha mulher. Sabe como é, anda sempre com saudades da irmã..."

"Eu sei, senhor doutor. Mas esta manhã recebi muita coisa e acredite que não tive tempo, tenho andado todo afergulhado. Até tive de levar um telegrama ao senhor doutor Leite, veja lá."

As cartas de Amélia eram sempre endereçadas à irmã. Dessa vez, porém, e ao passar uma segunda vez com os olhos pelo sobrescrito, Luís reparou que Amélia também escrevera o seu nome.

Para: Joana e Luís Afonso.

"Mas que raio!...", admirou-se.

"Está tudo bem, senhor doutor?"

Absorvido nos seus pensamentos, Luís resmungou uma resposta distraída e saiu da estação telégrafo-postal na dúvida sobre se deveria ou não abrir de imediato o envelope. O facto de o seu nome lá constar era uma indicação de que o conteúdo lhe dizia directamente respeito. Mas o que seria? Apossou-se dele um nervoso miudinho, feito de desejo e esperança e ansiedade. Talvez a carta lhe desbravasse novos caminhos para Amélia, embora o mais provável fosse isso não acontecer. Receava a decepção, mais uma na longa lista. A hesitação prolongou-se até ao fim da rua, que percorreu em diálogo consigo mesmo, abro não abro?, mas ao entrar na mercearia tomou enfim a decisão.

Ia abrir.

Quando chegou a casa pousou pesadamente a cesta com as compras no chão e sentou-se no cadeirão diante da mesinha de costura, o corpo esvaziando-se como um saco furado. Ainda às voltas com os botões da camisa, Joana ergueu a cabeça para olhar o marido e suspendeu o movimento da agulha, algures entre intrigada e alarmada.

"Então, Luís? O que tens?"

Já se habituara ao ar distantemente melancólico do marido, mas não era melancolia o que lhe lia nos olhos nesse momento. Era desânimo, era inquietação, era qualquer coisa pesada que logo a inquietou.

"Fala, homem! Estás a assustar-me! O que se passa?"

Luís meteu a mão no bolso e tirou um envelope dobrado, que estendeu à mulher.

"Lê."

Joana fixou os olhos no sobrescrito e pôs a mão no peito ao ver a letra do remetente, o alarme disparando-lhe no coração.

"Ai Jesus! O que é?" Olhava a carta que o marido lhe estendia, mas tinha medo de pegar nela.

"Aconteceu alguma coisa à minha irmã?"

"É o teu irmão."

"Qual irmão?"

"Não tens um irmão?"

"Ah, estás a falar do Chico?" A admiração de Joana era genuína; sabia que Francisco era o seu irmão adoptivo, claro, mas raramente o via como tal. "O que se passa? O que lhe aconteceu?"

Luís voltou a agitar o envelope que mantinha estendido na direcção da mulher.

"Lê."

Os dedos já a tremerem, Joana pegou por fim na carta.

"Morreu?"

"Foi apanhado."

"Mas está bem?"

"Foi apanhado, Joana. A polícia prendeu-o em Penafiel."

A mulher quase suspirou de alívio e desdobrou de imediato a carta que ainda momentos antes receara.

"Credo, Luís!", protestou, lançando um olhar ressentido na direcção do marido.

"Pregaste-me cá um susto! Chiça! Pensei que tinha acontecido qualquer coisa de muito grave..."

"O teu irmão foi preso. Não achas que isso é muito grave?"

"É melhor do que estar morto", retorquiu ela, colando os olhos às primeiras linhas da missiva. "Agora ao menos sabemos onde ele está. Ademais, não te esqueças que ele matou o Tino. Tem de ser punido, não achas?"

Surpreendido com a reacção da mulher, Luís ficou sem saber o que dizer. A detenção de Francisco era uma notícia desastrosa, mas a verdade é que só ele e Amélia conheciam a verdadeira amplitude daquele desastre. Para toda a gente, incluindo Joana, o que estava em causa era apenas a captura de um assassino. Para os dois amantes, porém, tratava-se de uma caixa de Pandora prestes a abrir-se. Se Francisco começasse a falar, a relação amorosa entre os dois tornar-se-ia inevitavelmente conhecida. Seria uma catástrofe!

A mente fervilhava-lhe em busca de saídas para aquele problema. Que deveria fazer? Ao reordenar os pensamentos, tornou-se evidente que a grande prioridade era convencer Francisco a manter-se calado. Mas como assegurá-lo? Olhou para a mulher e, no ardor da sua ansiedade, viu uma oportunidade. Teria de ser pela compaixão. Francisco teria de perceber que, se falasse, arrastaria toda a família para uma tragédia de dimensões incomensuráveis. E a melhor maneira de perceber isso era ver a família, sentir as irmãs junto dele, perceber que elas o ajudavam naquele momento difícil.