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"Talvez seja melhor ires a Penafiel."

"Para quê?"

"Para o veres, claro. Afinal, ele é teu irmão e precisa de ti."

Joana considerou por instantes a ideia e dobrou a camisa que havia remendado.

"Tens razão", disse, pondo-se de pé. "Vou ver a que horas é amanhã a caminheta para Bragança." Desapareceu no quarto, onde se começaram a ouvir as gavetas a serem abertas.

"Tu também vens?"

"Receio que a minha presença seja contraproducente."

"Porquê?"

"Para ser sincero, acho que o Chico não simpatizou comigo."

A mulher espreitou da porta do quarto.

"Ora! Ele nunca simpatiza com ninguém..."

Luís ergueu-se do cadeirão, foi buscar as botas para montar e assobiou na direcção de Nilo, chamando-o para um passeio.

"Ele precisa da família, Joana", disse num tom final. "Quem tem de estar com ele és tu e a tua irmã."

E saiu de casa.

A carta incendiara-lhe o dia. Estava convencido de que a detenção de Francisco teria consequências e precisava de ficar sozinho para melhor ponderar a nova situação.

XI

Um toque na porta do gabinete interrompeu a redacção do ofício por parte do graduado de serviço. O tenente Lopes praguejou e levantou os olhos na direcção da entrada.

"Entre."

O ajudante abriu a porta com suavidade e fez continência.

"O meu tenente dá licença?"

"Vocês não sabem que eu estou a trabalhar?", perguntou o tenente, sem esconder a irritação. "O que é agora?"

"Está aqui um senhor para si."

O graduado ajeitou o gesso no braço esquerdo e debruçou-se sobre a secretária para retomar a escrita.

"Ele que espere."

O ajudante manteve-se colado à porta, como se tivesse medo de sair.

"É o senhor inspector Silva..."

"Ele que espere, já disse."

"... da PVDE."

O tenente imobilizou a mão e ergueu as sobrancelhas espessas, de repente muito alerta.

Tinha estampada na cara a expressão de um menino mal comportado a quem os pais haviam apanhado em flagrante. Teria ouvido bem?

"Da... da Polícia de Vigilância?"

"Sim. Veio de Lisboa e..."

"Ele que entre!"

O ajudante desapareceu e o tenente pôs-se de pé, sem saber o que fazer. Não era todos os dias que se recebia um inspector da PVDE. Mirou-se no reflexo da vitrina da estante com os livros, para se assegurar de que estava apresentável. Tinha a camisa desabotoada e ligeiramente desfraldada, o que de imediato corrigiu. Certificou-se de que o distintivo com o emblema da PSP e o seu nome se encontrava pregado em conformidade com os regulamentos. O seu braço esquerdo continuava ao peito, como um destroço ali abandonado, mas quanto a isso nada podia fazer.

Um homem baixo de cabelo negro reluzente entrou no gabinete com ar de quem tinha pouco tempo a perder.

"O cavalheiro é que é o responsável por esta chafarica?", disparou.

O tenente pôs-se muito hirto e fez continência.

"Senhor inspector, é uma honra tê-lo por cá. Eu sou o graduado de serviço e não sabia que..."

"Onde está ele?"

O graduado olhou para o homem da PVDE, desconcertado.

"Como?"

"Onde está o tipo que vocês prenderam?"

"Qual deles?"

"O que veio de Espanha, homem!"

Os olhos do tenente Lopes dançaram de um lado para o outro, tentando perceber o que se passava. O inspector viera

de Lisboa de propósito para falar com o matulão que haviam detido na semana anterior?

"O senhor inspector está a referir-se ao indivíduo da Legião Estrangeira?"

"Sim, esse mesmo. Onde está ele?"

O graduado tirou da gaveta um molho de chaves longas, tão grandes que pareciam gazuas para abrir castelos, e fez um gesto em direcção à porta, convidando o homem da PVDE a sair à sua frente.

"Queira vir comigo, senhor inspector. Eu levo-o à cela."

Abandonaram o gabinete e meteram pelo corredor, rumo à ala onde os presos eram mantidos provisoriamente. O tenente caminhava à frente, as chaves a tilintarem-lhe no cinto como moedas num mealheiro, o braço engessado preso ao peito.

"O que lhe aconteceu?", perguntou o inspector, lançando um olhar para o braço.

"Foi o preso", devolveu o tenente, mal-humorado com a referência ao ferimento. "Ele resistiu à ordem de prisão e partiu-me um osso. Um outro camarada meu ficou com o sobrolho aberto."

"Caramba!", exclamou o homem da PVDE. "Deve ter sido uma tourada!"

"Nem imagina."

"Espero ao menos que vocês o tenham deixado em condições de falar."

"Perdão?"

"Bem... suponho que lhe tenham dado uma sova de caixão à cova, não?"

O tenente suspirou.

"Ninguém dá nenhuma sova a um homem destes."

"Porquê?"

O graduado abriu uma porta e assomaram aos calabouços da cadeia municipal.

"O senhor inspector já vai ver."

Os calabouços revelaram-se húmidos e escuros, com um forte hálito a podre; era o cocktail putrefacto do odor a mofo misturado ao fedor ácido da urina e das fezes. Uma claridade ténue desenhava silhuetas fantasmagóricas no chão e nas paredes, as formas banhadas por um anélito de luz. Devido à diferença de luminosidade, o inspector levou alguns segundos a adaptar-se à penumbra; conseguia ver as grades e as janelinhas pequenas e ainda uns vultos difusos sentados nas celas, mas não distinguia feições.

O graduado imobilizou-se diante de uma cela e agarrou uma grade da porta, abanando-a para a fazer retinir como um sino.

"É aqui", anunciou.

O inspector estreitou os olhos e esforçou-se por destrinçar o interior. Distinguiu um vulto volumoso sentado numa esteira ao canto. O vulto tornou-se ainda maior quando se levantou para encarar os recém-chegados.

"Caramba!", exclamou o homem da PVDE, impressionado com o corpanzil do suspeito.

"É este o nosso homem?"

"Chama-se Francisco Rodrigues, senhor inspector."

"Eu sei muito bem como ele se chama. Pode abrir a porta?"

O pedido deixou o graduado desconcertado.

"O senhor inspector quer libertá-lo?"

"Não, homem. Quero é entrar."

Sem questionar a ordem, que manifestamente considerava bizarra e até perigosa, em virtude do perfil violento do recluso, o tenente pegou no molho e, à meia-luz, os olhos colados

às chaves para as ver melhor, procurou aquela que correspondia à fechadura da cela.

Encontrou-a, encaixou-a na enorme fechadura da porta e rodou-a para abrir.

Clank.

O inspector entrou na cela e virou-se para o graduado, as grades agora a separá-los.

"Tranque a porta e vá-se embora."

"Mas, senhor inspector, isso não é..."

"Vá-se embora!", cortou o homem da PVDE com impaciência. "Eu chamo-o quando terminar."

Sem se atrever sequer a resmungar, o graduado trancou a porta e afastou-se, os passos a reboar pelo corredor até se sumirem, deixando os calabouços entregues aos reclusos e ao recém-chegado.

O inspector girou a cabeça em redor, os olhos já adaptados à penumbra. Um dos presos começou a cantarolar, desafinado, e outros puseram-se a tagarelar. Do tecto pingavam gotas de água que tombavam em poças com um clac metálico. Um sopro de aragem traçava um rasto de pó desde a janelinha; parecia o rendilhado de uma galáxia a flutuar à meia-luz da eternidade. As celas estavam nuas, despojadas, apenas decoradas por uma esteira suja e por um balde imundo; os corpos transpirados dos presos languesciam ao longo das esteiras e sobre os baldes zumbiam furiosamente varejeiras, num festim de detritos e imundice.

"O cavalheiro é o legionário?", perguntou, dirigindo-se ao vulto maciço que o olhava em silêncio do canto da cela.