A massa de homem deu dois passos e ficou frente ao inspector. A diferença de estatura e de volume de corpos tornou a cena bizarra; era como se um gorila olhasse para um chimpanzé.
Quem e você?
O inspector estendeu o braço.
"Chamo-me Aniceto Silva e sou inspector da PVDE." Apertaram as mãos. "Presumo que saiba o que é a PVDE..."
Francisco abanou a cabeça.
"Não."
"Chama-se Polícia de Vigilância e Defesa do Estado e serve para combater os comunistas e os espiões." Olhou em volta da cela. "Oiça, não há aí nenhum sítio onde nos possamos sentar?"
O prisioneiro indicou a esteira.
"Só se for ali." Girou o dedo noutra direcção e apontou para o balde. "Ou ali."
As moscas zuniam em fúria sobre o balde e o recluso sorriu .com desdém. O inspector espreitou o recipiente com um esgar de repulsa e dirigiu-se à esteira, evitando os pequenos charcos que a humidade gotejante semeara pelo chão.
"Isto é perfeitamente nojento", observou.
Verificou se a extremidade da esteira que escolhera para se sentar estava limpa e acomodou-se com mil cautelas.
Francisco encolheu os ombros e sentou-se também.
"Já vi pior", disse o legionário. "Quando fiz a recruta em Dar Riffien, os tipos puseram-me um dia inteiro mergulhado nos esgotos. E uma vez no Jarama apanhei na cara com as tripas de um camarada esfrangalhado por uma bala de canhão." Indicou o balde com a cabeça. "Depois de se passar por trampas dessas, isto não é nada."
"O cavalheiro fez a guerra toda?"
"Quase toda. Fiz a Andaluzia, fiz Badajoz, estive em Madrid, andei no Jarama, fiz a conquista de Barcelona, fui até à fronteira..."
O inspector assobiou, impressionado.
"Ena... isso é um curriculum e peras." Estudou Francisco com atenção. "Matou muitos comunistas?"
Os olhos do legionário brilharam.
"Muitos", confirmou. "O inferno está cheio de filhos da puta que mandei para lá."
O inspector soltou uma gargalhada e inclinou-se para a frente, batendo na perna do legionário em sinal de aprovação.
"O cavalheiro é cá dos meus!"
Francisco arreganhou um sobrolho desconfiado.
"Pois sim", disse, no tom céptico de quem já viveu muito. "Mas a verdade é que estou aqui enjaulado como se não passasse de um animal."
O homem da PVDE tirou um maço de cigarros do bolso de trás das calças.
"Pois é justamente sobre isso que lhe quero falar", disse. Estendeu o maço na direcção do prisioneiro. "Vai um cigarrinho?"
Francisco aceitou o cigarro, que o inspector alumiou com os dedos amarelecidos de nicotina. Em breve havia duas pontas rubras de luz a dançar na escuridão e uma nuvem de fumo cinzenta tornou-se branca ao ascender diante da janela; o aroma acre parecia perfume na pestilência nauseabunda dos calabouços.
"O senhor pode tirar-me daqui?", quis saber Francisco, as palavras saindo-lhe cautelosas, como mãos a tactearem o caminho.
"Posso", confirmou o inspector. "Mas primeiro preciso que me conte o que se passou em Castelo de Paiva."
O prisioneiro hesitou, cauteloso, e perscrutou melhor o seu interlocutor. Seria aquilo uma armadilha? Não conhecia o homem de parte alguma, aparecia-lhe ali todo simpatia e cheio de salamaleques, chamava-lhe cavalheiro, sentava-se
com ele, dizia-se um grande manda-chuva, oferecia-lhe um cigarro... e depois queria arrancar-lhe uma confissão.
Não, nesse truque não cairia ele.
"Não sei."
"Oh, não me venha com essa! Então o cavalheiro não sabe o que se passou em Castelo de Paiva?"
O homem da PVDE aguardou um momento pela resposta, mas Francisco manteve-se calado. O inspector era um polícia experiente em interrogatórios e sabia que teria de ser subtil para extrair do prisioneiro o que queria dele. Os assaltos directos teriam de ser intercalados por formas mais insidiosas de actuar.
"Oiça, eu vou ser sincero consigo", disse, exalando duas baforadas de fumo pelo nariz, como um dragão pachorrento. "Como lhe disse, sou inspector da PVDE. A minha missão é combater os comunistas e os inimigos da nossa pátria, não é desvendar casos de delito comum. Isso é para a Judiciária." Apontou para o seu interlocutor. "Eu olho para si e o que vejo? Vejo um patriota, vejo um herói, vejo um homem disposto a dar a vida para acabar com a terrível ameaça do comunismo à nossa civilização. O que o cavalheiro fez e o que o cavalheiro faz é, não duvide!, digno da maior admiração." Pôs a mão no peito. "E olhe que é com a maior sinceridade que o digo: o cavalheiro é mesmo digno de admiração! Um exemplo para a nossa juventude!" Indicou a cela com um gesto furtivo. "Faz algum sentido a pátria ter o cavalheiro aqui trancado? Não faz. Mas também Cristo teve de passar pela cruz antes de atingir a redenção, não é verdade?" Fitou Francisco nos olhos. "O cavalheiro está a entender o que estou a tentar dizer-lhe?"
O legionário abanou a cabeça, baralhado.
"Não muito bem."
O inspector respirou fundo. O homem era um calhau, percebeu.
"O que lhe quero dizer é que me estou a marimbar para o que se passou em... em... como é que se chama a terriola onde o outro gajo se finou?"
"Castelo de Paiva."
"Isso. Não tenho nada a ver com a investigação ao que ali se passou, nem me apetece meter-me nisso."
"Então porque me faz perguntas sobre... sobre o que aconteceu?"
"Porque há um processo que está a decorrer. Porque o processo se encontra em fase de instrução e o cavalheiro vai ser acusado de homicídio. Porque, quando isto chegar ao tribunal, o cavalheiro será inapelavelmente condenado por ter morto um homem." Ergueu o dedo, solene. "E só há uma pessoa que pode travar tudo isso."
"Quem?"
"Eu."
O inspector largou mais uma baforada lenta, as volutas de fumo a rolarem como anéis, enlaçando-se umas nas outras até se perderem difusamente na sombra e acenderem de novo ao passar pelo hálito de luz que a janela expirava.
"O que pode o senhor fazer por mim?"
"Posso e quero tirá-lo daqui. Não faz para mim nenhum sentido que um cavalheiro como o senhor se encontre nesta situação por causa de um incidente infeliz que ocorreu há uns anos." Fez uma careta. "O problema é convencer o Ministério Público a retirar a queixa que impende sobre si. É que, bem vê, existe em toda esta história um homem assassinado. E, havendo um homem assassinado, há necessariamente um
assassino. Como ocorreu um crime público, é preciso dar-lhe solução. Está a ver onde eu quero chegar?"
"Não."
O homem da PVDE não se surpreendeu. As subtilezas não eram, definitivamente, o ponto forte do legionário.
"O que eu quero dizer é que, para o libertar, preciso de arranjar um assassino, percebeu?
Não precisa de ser o cavalheiro, pode ser qualquer outra pessoa."
"Ah, já entendi", exclamou Francisco, o rosto iluminando-se. "Então... faça isso. Por mim, maravilha!"
"Mas qual é a outra pessoa que se pode acusar?"
"Não tem aí um comunista qualquer?"
O inspector abanou a cabeça.
"Não funciona assim", disse. "Tem de ser um suspeito credível, alguém que possa verosimilmente ter cometido o crime."
"Oh."
Fez-se silêncio. O agente fez deslizar o pé pelo chão húmido de cimento, à espera que o prisioneiro avançasse com uma sugestão. Mas Francisco permanecia calado, manifestamente sem ideias para resolver o problema.
Era preciso dar mais um empurrão.
"Oiça, quando o crime ocorreu, o cavalheiro estava sozinho?"
"Bem... não. Estava lá o Tino."
"Quem é o Tino?"
"É o... o morto."
"Não foi isso o que perguntei", insistiu o inspector, revirando os olhos. "O que eu quero saber é se havia nas redondezas mais alguém para além de vocês os dois."