Francisco manteve-se calado e desviou o olhar. Ao ver esta reacção, o inspector quase sorriu. Tornara-se claro que existia
ali de facto matéria a explorar; era só uma questão de esperar pelo momento certo e desferir então o golpe de misericórdia.
Tirou umas folhas do bolso e desdobrou-as.
"Aqui o relatório da GNR fala na presença do senhor alferes veterinário Luís Afonso, e de mais outras pessoas." Fixou os olhos em duas linhas do relatório. "A senhora dona Joana Afonso, a senhora dona Amélia Branco e respectivos filhos." Fitou Francisco. "Confirma?"
Sem dizer palavra, o prisioneiro assentiu com um movimento afirmativo da cabeça.
"Em bom rigor, qualquer destas pessoas pode ter cometido esse crime. Estavam todas presentes na mesma quinta. Está a entender onde eu quero chegar?"
Francisco voltou a assentir com a cabeça.
"Claro que me parece fora de questão que as senhoras ou as crianças tenham cometido um crime tão hediondo. Além do mais, e mesmo que quisessem, nem teriam força para partir o pescoço à vítima." Soergueu a sobrancelha. "Mas já este alferes veterinário Luís Afonso parece-me um caso diferente." Cravou os olhos com intensidade no seu interlocutor. "Não acha?"
O prisioneiro manteve-se calado.
"O cavalheiro porventura simpatiza com este senhor alferes veterinário?"
Francisco encolheu os ombros e esboçou um esgar de indiferença.
"Então qual é o problema?", persistiu o inspector, tentando forçar a nota neste ponto decisivo.
"Ele é marido da minha irmã."
O agente da PVDE inclinou-se para a frente e assumiu uma postura de conspirador.
"Temos informações de que este sujeito desenvolve actividades contrárias ao interesse da nação", murmurou, como se estivesse a desvendar um segredo de Estado. "Poderá mesmo ser um comunista." Deixou a última palavra fazer efeito na mente do seu interlocutor. "Por que razão está o cavalheiro a defender tal verme? Não é evidente para toda a gente que é ele o verdadeiro assassino? Ser marido da sua irmã não é um inconveniente para que a verdade saia cá para fora: é mesmo uma vantagem. Pois se o homem é comunista, então o cavalheiro está até a prestar um serviço inestimável à senhora sua irmã ao livrá-la de um sujeito com ideias tão nefastas, não lhe parece?"
O silêncio abateu-se sobre a cela. As gotas de água continuavam a lacrimejar ritmadamente sobre as poças abertas no chão, clac, clic, clac, e o rumor desordenado das conversas sussurradas nas restantes celas prosseguia aos tropeções, ora agora recrudescia, ora agora amainava.
"Repare", porfiou o inspector, avançando para desferir a estocada final. "Se o assassino for o cavalheiro, o que acontecerá? Um grande patriota irá para a cadeia por homicídio.
Mas, se o crime foi cometido pelo outro, o patriota ficará livre para sempre e, ainda por cima, ajuda a retirar um perigoso comunista da circulação. Qual é a dúvida?"
Os olhos de Francisco cristalizaram-se num ponto indefinido da sombra, a mente intensamente ocupada no processamento de todas as ideias que lhe acabavam de ser sopradas. A opção era realmente essa: ou ia ele para a cadeia ou quem ia era aquele presumido, o marido infiel de Joana, o porco que uma vez quase esganara dona Beatriz, o cabrão que realmente o metera naquela confusão. Sim, era preciso não esquecer que tudo aquilo começara porque o marialva se atrevera a meter-se com a filha da dona Beatriz! Não fosse isso e o Tino a esta
A VIDA NUM SOPRO
hora ainda estaria vivo. Não fosse isso e ele próprio, Francisco, não teria sido obrigado a fugir! Não havia dúvida, o culpado era aquele.... aquele comunista!
O prisioneiro olhou por fim para o inspector da PVDE e suspirou.
"Muito bem", disse. "Vou contar-lhe tudo."
XII
A vaca mostrava-se realmente murcha, quase apagada. Estava deitada no lameiro no meio da palha, os olhos mortiços e uma baba branca a escorrer-lhe dos cantos da boca. O
veterinário molhou o indicador na baba e aproximou-a do nariz para a cheirar; não gostou do odor. Pôs-lhe o polegar sobre a órbita esquerda e puxou-lhe a pálpebra para cima, analisando-lhe o branco do olho.
"A Rosinha vai finar-se, sô'tor?"
O serra-cancelas seguia a consulta com muita atenção, quase como se o bovino fosse um membro da família.
"Tenha calma, Ti Manei", devolveu-lhe Luís, já ocupado com a parte de baixo do olho.
"Ai, arreceio tanto por ela, valha-me Deus. Ando mesmo ralado de a ver com este aspeito assacrado, tadinha. Isto não é nada bô. Ela era tão abalofada, o sô'tor havia de ver!
Agora, ó, botou-se-me assim afinhada." Cerrou a fronha, numa expressão inquisitiva. "O
sô'tor acha que a Rosinha tem os pordentros arruinados?"
"Vamos ver, vamos ver." Procurou em redor. "Oiça lá, você tem aí uma amostra das fezes?"
"O quê, sô'tor?"
"O abarro. Onde está o abarro dela?"
"Botei-o lá fora, sô'tor. Vou buscar."
O homem levantou-se e saiu do estábulo. O veterinário permaneceu ajoelhado diante da vaca, procurando sintomas adicionais que confirmassem o diagnóstico que já ia formando na mente.
"Sô'tor!"
A voz vinha da entrada e Luís nem voltou a cabeça, tão concentrado se encontrava na avaliação do estado da vaca.
"O que é, Ti Manei? Não encontrou o abarro?"
"Está aqui um carro oficial."
O veterinário olhou por fim para trás, intrigado com a informação.
"Que carro oficial? Do que está você a falar, homem?"
"É um carro oficial, sô'tor." Fez um sinal para trás "Deve ser o senhor presidente do Conselho a convidá-lo para ministro, c'um caneco."
"À certa!", exclamou Luís. "Então vá lá ver o que lhe querem, eu espero pelo abarro."
"Mas não sou eu que eles querem, sô'tor. É o senhor."
"Eu?", admirou-se o veterinário. "Mas quem é?"
"É um home-de-recibo todo bem apessoado q'anda p'rá'li à escogita. Demandou por si."
Com uma expressão intrigada no rosto, Luís ergueu-se e veio à porta do estábulo. Viu um automóvel negro no caminho de terra e reconheceu no interior o rosto anafado do meritíssimo doutor Machado, o eminente juiz da terra, voz conservadora e parceiro das grandes jogatanas de domingo na sala de chá da Pensão Alves.
"Por aqui, senhor doutor juiz?", cumprimentou, limpando as mãos à bata enquanto se aproximava do recém-chegado.
Ao vê-lo, o doutor Machado abriu a porta do automóvel e apeou-se com esforço.
"Ah, doutor Afonso, finalmente que o encontro."
"Então? O que se passa?"
O rosto do juiz pareceu toldar-se por uma névoa de chumbo. Mergulhou a mão sapuda no casaco e extraiu uma folha.
"Recebi de manhã este ofício de Lisboa a seu respeito."
O doutor Machado calou-se; parecia manifestamente embaraçado. Os olhos do veterinário pousaram no documento que o vento sacudia nas mãos do juiz.
"E então?"
"É do Ministério do Interior." Hesitou e carregou as sobrancelhas, interrogativo. "O doutor, diga-me lá: o senhor tem-se metido em sarilhos?"
"Do que está o senhor doutor juiz a falar? Que ofício é esse?"
"Estão a pedir que intime o senhor doutor a apresentar-se em Lisboa para prestar esclarecimentos."
"Esclarecimentos de quê?"
"Pois... é isso que me faz espécie. O senhor doutor envolveu-se em alguma situação... enfim, menos clara, digamos assim?"
Luís mordeu o lábio, sem saber para onde exactamente a conversa se dirigia mas pressentindo o seu rumo.