"O que diz a carta, senhor doutor juiz?"
O doutor Machado estendeu-lhe o documento.
"O ofício não revela nada", disse. "Ora veja."
O veterinário pegou na carta e passou os olhos pelo cabeçalho. Tinha timbrado o escudo português e era do Ministério do Interior. Em letra dactilografada numa fita já muito gasta, requeria a sua excelência, o senhor doutor juiz Alberto Machado, digníssimo magistrado em Vinhais, que intimasse o senhor doutor Luís António Afonso, médico veterinário na mesma vila, a apresentar-se no dia 15 de Agosto, pelas 11 horas, na Rua António Maria Cardoso, em Lisboa, a fim de prestar os esclarecimentos tidos por convenientes. O ofício terminava com o tradicional "a bem da Nação" e tinha por baixo uma assinatura ilegível.
"Que esclarecimentos são estes?", perguntou Luís, devolvendo a carta ao juiz.
"Só sei o que li aqui. Os senhores do ministério solicitam a sua presença em Lisboa. Quanto ao resto, nada sei." Os olhos do juiz tornaram-se perscrutadores. "O senhor não se tem envolvido em confusões, pois não?"
"O senhor doutor juiz, a minha vida é toda ela uma confusão." Baixou os olhos para a carta que o doutor Machado mantinha nas mãos. "Diga-me uma coisa: e se eu não quiser ir?"
"O senhor doutor tem mesmo de ir."
"Sim, mas e se eu não quiser?"
O doutor Machado mudou de perna de apoio, claramente pouco à vontade.
"Não se meta nisso, doutor Afonso. Olhe que eles até estão a ser simpáticos ao solicitar-lhe que se apresente voluntariamente. Se eu fosse a si ia lá, prestava os esclarecimentos devidos e voltava.
Se o senhor doutor não fez nada, não tem nada a temer, não é verdade?"
"Pois, mas se eles querem mesmo falar comigo, que venham cá. Agora eu sou algum moço de recados que esteja aqui às ordens de suas senhorias de Lisboa?"
"Não faça isso, doutor. Vá e resolva o assunto, vai ver que é melhor."
"É melhor, porquê? Então eu é que tenho a maçada e eu é que entro com as despesas e isso é melhor? Melhor para quem?"
"Faça o que eu lhe digo: vá."
"Mas porquê? O que me acontece se não for?"
"Se o doutor não for, eles vão ficar melindrados e... enfim, irão adoptar medidas menos agradáveis."
"Ai sim? Tais como?"
O juiz passou com as costas da mão pela testa, para limpar a transpiração, e respirou fundo.
"Mandam prendê-lo."
"Mandam-te prender?"
A reacção de Joana foi de absoluta estupefacção quando Luís lhe reproduziu a conversa dessa manhã junto ao estábulo do Ti Manei.
"Foi o que o juiz disse."
"Mas porquê? O que fizeste tu?"
O marido afagou o queixo, quase incapaz de conter a ansiedade. Queria discutir o assunto que verdadeiramente o atormentava e todas as suas ramificações, mas não o podia fazer, não com Joana. Quanto muito, poderia apenas aflorar a questão.
"Deve ser por causa do teu irmão."
"Quem? O Chico?"
"Sim, claro. Não te esqueças de que estávamos na quinta quando o teu irmão partiu o pescoço ao caseiro."
"Também eu lá estava e que eu saiba ninguém me convocou para prestar quaisquer esclarecimentos."
Luís calou-se, reprimindo os seus pensamentos. Ao contrário da mulher, ele tinha testemunhado o crime. Mas isso Joana não sabia. A versão que ele e Amélia na altura haviam concertado fora que se tinham deparado com o cadáver ao sair lá para fora. O problema, claro, é que isso só era sustentável enquanto Francisco se mantivesse calado. Mas com ele detido em Penafiel não havia modo de saber se o rapaz ia ou não dar com a língua nos dentes.
"Que tipo de pessoa é o teu irmão?", perguntou de chofre, quase a despropósito.
"O Chico? Se queres que te diga não sei bem. Como sabes, não me dava muito com ele.
Porquê?"
"Achas que ele era menino para andar a inventar coisas contra outras pessoas?"
Joana ficou a olhar para o marido, como se tivesse acabado de cair em si. Ficou um longo instante ali especada, avaliando se aquela linha de pensamento fazia algum sentido.
"Pensas que o Chico ia dizer que tu o ajudaste a matar o Tino?", perguntou ela muito devagar.
"É uma hipótese."
A mulher permaneceu uns segundos em silêncio, equacionando a possibilidade.
"Não me parece", afirmou enfim.
"Pois, mas o facto é que o Ministério do Interior quer falar comigo."
"Está bem", assentiu ela. "Mas daí até ele te acusar de alguma coisa... não me parece."
"Porque dizes isso? Afinal, e como tu própria já reconheceste, não te davas assim tão bem com ele quanto isso..."
"Eu não o conhecia, é verdade, mas conhecia-o a minha mãe."
"E então?"
"Ela costumava dizer que o Chico era mais fiel do que um cão." Desfocou os olhos, como se tivesse alterado o centro da sua atenção. "Uma vez a minha mãe deu-lhe uma trepa por ele ter devorado uma lata inteira de bolachas Maria que ela guardava lá em casa. Com a mão ainda a doer de tanto lhe bater, agarrou-o pela orelha e levou-o para a mercearia, supostamente para ir buscar mais uma lata, mas na verdade para o humilhar em público.
Acontece que um labrego qualquer os viu a passar na rua e mandou uma piadinha ordinária à minha mãe, do género: eu, com uma mãezinha dessas, fazia--lhe isto e aquilo. Pois o Chico ouviu-o e não descansou enquanto não o moeu de pancada; teve de ser a minha mãe a arrastá-lo dali. E isto, nota, poucos minutos depois de ter sido sovado por ela!"
Um sentimento de alívio assentou aveludadamente em Luís, que se descontraiu um pouco.
"Fidelidade canina, portanto."
"Isso."
Com uma expressão subitamente determinada, Joana levantou-se do lugar e dirigiu-se à escrivaninha do marido.
"Onde vais?"
"Vou começar a preparar as coisas para a tua partida."
"Calma!", disse ele. "A viagem é só na próxima semana, que diabo. Temos tempo!"
Ignorando o argumento, a mulher abriu uma gaveta da escrivaninha e retirou do interior duas folhas densamente preenchidas. Observando-as à distância, Luís percebeu que eram as tabelas de horários da camioneta de Bragança e dos comboios para o Porto e para Lisboa.
"A próxima semana é já daqui a três dias, Luís."
A ansiedade consumiu o veterinário nos três dias de espera pela partida para Lisboa.
Fingiu-se despreocupado e evitou alterar a rotina, mas a verdade é que a sua mente não largava o assunto. Acordava mais cedo a pensar no que lhe quereria o Ministério do Interior, desempenhava todas as suas funções com o problema a martelar-lhe a mente e ia deitar-se sempre com a cabeça na mesma coisa. Até em sonhos o tema lhe aparecia.
Como não era capaz de viver assim, sempre obcecado com o mesmo assunto, começou a convencer-se de que o mais provável era a montanha ir parir um rato. Se Francisco tivesse proferido declarações comprometedoras, raciocinou, inevitavelmente arrastaria a irmã consigo. Ora, e atendendo ao perfil de fidelidade canina que Joana descrevera, isso não parecia provável. Além do mais, era preciso ter em conta a forma como ele mesmo havia sido interpelado. Caso o assunto estivesse relacionado com a morte do caseiro em Castelo de Paiva, o contacto não seria evidentemente feito pelo Ministério do Interior, mas pela Polícia Judiciária. E, se existissem realmente suspeitas de cumplicidade no homicídio, não lhe pediriam que fosse a Lisboa prestar esclarecimentos; viriam antes detê-lo na sua própria casa.
Este raciocínio foi-o deixando mais tranquilo, mas por outro lado criava um novo enigma. Se o Ministério do Interior não o queria ouvir sobre o crime de Castelo de Paiva, então qual seria a razão da sua convocatória? Que raio de esclarecimentos eram aqueles que lhe seriam solicitados? Foi como se tivesse saído do forno a escaldar para a panela a ferver. Se o motivo da convocatória não era a morte do caseiro, haveria de ser outra coisa qualquer. O facto é que o Ministério do Interior queria interrogá-lo e, por mais que tentasse tranquilizar-se e dissesse a si mesmo que não aconteceria nada de especial e que correria tudo bem, essa realidade permanecia incontornável.