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Estava Luís em casa ainda mergulhado nos becos sem saída do problema quando Nilo assomou à porta e ganiu baixinho, fazendo sinal em direcção às escadas exteriores.

"O que é, Nilo? Vem aí alguém?"

O cão baixou a cabeça em assentimento e o dono levantou-se para espreitar lá para fora. Viu a figura ossuda do advogado da terra, o doutor Garcia, a bufar transpiração enquanto escalava os degraus.

"Ora viva, caro amigo!", acolheu-o. "Por cá?"

Ao chegar à porta de entrada, o advogado respirou fundo.

"Ufa!", expeliu, afogueado, desapertando o nó da gravata às cornucópias azuis. "Hoje está um calor do arco-da-velha, rais t'a parta o diabo!" Apertou a mão ao anfitrião. "O senhor doutor não terá por aí uma aguinha?"

"Entre", convidou-o Luís, fazendo sinal ao advogado de que passasse à frente. "Já lhe vou buscar um copo."

"Eu preciso é de uma garrafa."

O visitante instalou-se numa poltrona da sala e Luís foi à cozinha buscar a água. Voltou instantes depois com uma garrafa de litro e meio, que o doutor Garcia quase esvaziou de uma assentada.

"Aaaaah! Maravilha!", suspirou o advogado ao pousar a garrafa na mesinha ao lado da poltrona.

"Agora sei o que sentem os camelos depois de atravessarem o deserto, c'um caneco!"

Luís acomodou-se na poltrona ao lado.

"Então o que o trás por cá?"

"É a sua viagem, meu caro."

"O que tem ela?"

"O doutor Machado falou-me da sua convocatória e eu decidi vir aqui para lhe oferecer os meus serviços."

"Ah, muito obrigado. Espero não vir a precisar deles. Afinal isto é apenas um pedido para prestar esclarecimentos, nada mais. Se fosse coisa grave, decerto não vinha uma carta nestes termos, conforme aliás o próprio doutor Machado fez questão de me dizer."

O advogado esboçou uma careta.

"Pois, mas não sei se será assim tão simples."

Luís ergueu o sobrolho, subitamente inquieto.

"Porque diz isso?"

O doutor Garcia passou a palma da mão pela cara, como se tentasse limpar os últimos vestígios de suor, mas era evidente que procurava reordenar os pensamentos para melhor expor o que ali o trouxera.

"Oiça, o doutor Machado falou-me no assunto logo que o ofício chegou de Lisboa e eu confesso que não prestei grande atenção porque também raciocinei nos mesmos moldes. Se fosse coisa grave, tinha com certeza vindo uma ordem pior." Entrelaçou os dedos. "Mas esta manhã, no tribunal, o assunto voltou à baila e o doutor Machado, já nem sei porquê, mostrou-me o ofício." Fez um estalido com a língua. "Quando o li... olhe, caiu-me o coração aos pés."

Luís, que na sua poltrona se esforçava por aparentar a maior tranquilidade, descruzou a perna e inclinou-se na direcção do visitante, o alarme a perpassar-lhe pela face.

"Porquê? O que tem a carta de especial?

O advogado coçou a cabeça, como se estivesse indeciso.

"Não sei como lhe diga isto", titubeou, a tactear o caminho. "A verdade é que aquele ofício está-

me a fazer espécie."

"A si e a mim. Isto do Ministério do Interior querer fazer-me perguntas é enervante, realmente.

Estou farto de matar a cabeça para tentar perceber o que diabo me querem eles, mas, por mais voltas que dê, a verdade é que não encontro respostas."

"O senhor doutor leu a carta?"

"O juiz mostrou-ma."

"Não notou lá nada de estranho?"

"Quer dizer, para além da estranheza de eu ser convocado para prestar esclarecimentos sobre um assunto que desconheço, não. Porquê?"

O doutor Garcia meteu a mão ao bolso e extraiu um bloco de apontamentos com linhas azuis. Folheou-o rapidamente até se fixar numa página rabiscada a negro.

"Eu tomei a liberdade de copiar o teor do texto." Apontou para uma linha. "O que me está a fazer espécie é isto que vem aqui. Ora veja."

Luís espreitou a linha. O dedo do advogado indicava o endereço contido na carta.

"A Rua António Maria Cardoso? O que tem?"

O doutor Garcia respirou fundo, retirando daquela morada todo o significado contido no ofício.

"Esta morada não é a do Ministério do Interior, doutor", revelou. "Mas nesta rua encontra-se uma entidade tutelada pelo ministério e é ela quem o está verdadeiramente a interpelar. Não está a ver quem é?"

"Eu não."

"É a pevide."

"Quem?"

O advogado pestanejou, como se até pronunciar aquelas siglas fosse penoso.

"A PVDE."

XIII

Aquela zona de Lisboa era-lhe muito familiar dos seus tempos de estudante. Fora aqui no São Luiz que devorara fitas e mais fitas de Marlene Dietrich e May McAvoy, procurando sempre nesta última o rosto melancólico de Amélia; fora acolá na Bertrand que passara horas a folhear livros, desde romances até sebentas, sempre em busca da última novidade; e fora ali na Brazileira que, com um café e uns bolinhos na mesa, tivera os seus múltiplos flirts de estudante, espreitara poemas de poetas quase desconhecidos ou se digladiara ferozmente com o seu amigo Fernando em torno dos méritos e deméritos do regime.

Voltava agora ao mesmo local, embora o espírito fosse desta feita bem diferente. Já não encarnava o estudante invencível que acreditava ser capaz de mudar o mundo, mas o cidadão reprimido e quebrado e que já só queria levar uma vida recatada e conformada, sem problemas nem ambições, procurando viver os dias sem se fazer notado, transportando a

desilusão como um animal carrega o fardo, aceitando a situação com a resignação de um mártir diante do sacrifício.

O espírito com que percorria o Chiado cristalizava-se no discreto edifício que lhe apareceu em frente ao dobrar a esquina. De um lado resplandecia a arrojada fachada do cinema São Luiz, do outro a bandeira verde com o planeta a proclamar "Ordem e Progresso" assinalava a embaixada do Brasil, e no meio, quase como uma excrescência emparedada em tão nobre vizinhança, plantava-se a sede da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado. No topo da esquina, pregada a uma parede, uma tabuleta de azulejo assinava a Rua António Maria Cardoso.

Fazendo um esforço para controlar as batidas cardíacas, Luís respirou fundo e cruzou a rua.

"Venho aqui por causa de uma convocatória", anunciou na recepção.

O recepcionista, um homem calvo no topo da cabeça e com tufos de cabelos atrás das orelhas, abriu um enorme livro.

"Nome?"

"Luís Afonso, veterinário."

O dedo roído do recepcionista deslizou pelo livro até se imobilizar numa linha.

"Ah, está aqui. Tem aí o seu bilhete de identidade?"

Sem dizer uma palavra, Luís extraiu o documento do bolso e entregou-o. O homem registou o número e o nome, guardou o bilhete de identidade numa caixinha de madeira e estendeu um crachá ao visitante.

"Ponha isto ao peito", ordenou. Apontou para as escadas. "Suba até ao segundo andar e vire na primeira porta à direita."

Luís assentiu e, com a mesma vontade de um condenado que segue para o cadafalso, pregou obedientemente o crachá à

camisa e escalou as escadas. Alguns homens subiam e desciam, mas não parecia haver muita azáfama no edifício; dava a impressão de que tudo aquilo não passava de mais uma repartição pública.

Ao chegar ao segundo andar viu uma porta à direita e bateu, seguindo as instruções que o recepcionista lhe dera. Um homem com ar carrancudo mandou-o sentar-se e desapareceu, deixando-o sozinho. A salinha tinha uma janela que se abria para um pátio interior, mas não se atreveu a espreitar; pareceu-lhe melhor seguir à risca as ordens. Se o mandavam sentar-se permaneceria sentado.