O homem reapareceu alguns minutos depois e, com um grunhido e um gesto da cabeça, mandou-o segui-lo. O indivíduo meteu pelo corredor e parou diante de outra porta. Deu dois toques ligeiros com as costas da mão.
"Entre", ordenou uma voz.
O homem abriu a porta e fez sinal a Luís de que passasse. O visitante cruzou a entrada e deparou-se com a figura minúscula e aprumada de Aniceto Silva sentada a uma enorme secretária de madeira a rabiscar uns papéis. A porta fechou-se atrás de Luís, deixando-o a sós com o inspector.
"Sente-se", ordenou o homem da PVDE sem levantar os olhos.
Luís acomodou-se na cadeira diante da secretária e aguardou em silêncio. Havia um retrato de Salazar e outro de Carmona na parede atrás do inspector, e um mapa de Portugal na parede ao lado. Uma pequena bandeira portuguesa ornava a secretária, onde se destacavam resmas de papéis muito bem ordenadas. Da janela do gabinete vinha um hálito de claridade e lá em baixo passavam automóveis e transeuntes, percorrendo a António Maria Cardoso num bulício rotineiro.
A Luís tudo aquilo parecia bizarramente normal, o que conferia um estranho toque de irrealidade à cena. Ouvia lá fora o roncar de motores e buzinadelas pontuais, mas no gabinete o som dominante era o da caneta do inspector a deslizar pela superfície rugosa do papel.
Com um garatujo rápido, semelhante ao das assinaturas nervosas, Aniceto Silva concluiu a redacção. Pousou a caneta sobre o tinteiro, fez dois buracos na folha e inseriu-a numa pasta, que guardou numa pequena estante junto à secretária.
"Então sempre nos voltamos a ver, hem?", perguntou, encarando finalmente o visitante.
"É a primeira vez que nos visita aqui nas nossas humildes instalações, presumo."
"Sim."
"Se tudo correr bem e o cavalheiro tiver juizinho, não será a última."
Luís cerrou as sobrancelhas, estranhando o comentário.
"O que quer o senhor dizer com isso?"
O inspector abriu uma gaveta e extraiu do interior uma pasta cinzento-clara.
"Já vai perceber." Abriu a pasta e começou a folhear os papéis no seu interior. "O
cavalheiro sabe o que isto é?"
"Não faço a mínima ideia."
"É o seu dossier." Seleccionou um documento. "Este é o auto de informação sobre si."
Acenou com a folha. "Está a ver?"
Era um papel magenta, com texto dactilografado a negro e os nomes em maiúsculas a vermelho já desbotado. Com o documento nas mãos do inspector era difícil perceber o seu teor, mas mesmo assim conseguiu ler a palavra informação no topo e logo em baixo o seu nome, Luís António Afonso.
"Posso ler?"
O inspector esboçou um sorriso ardiloso.
"Isso queria o cavalheiro!", ciciou. "Mas eu leio-lhe o essencial, fique descansado." Endireitou a folha e passou os olhos pelo texto. "Diz aqui que Rui Lopes da Silva, membro do chamado «p. c.
p.» com o pseudónimo de «Victor», confessou ter sido ajudado por um estudante a escapar de uma acção de desestabilização no Instituto Superior de Medicina Veterinária, em 1935. Um inquérito permitiu identificar o referido estudante como sendo o senhor Luís António Afonso. Mais apurou o inquérito que o referido estudante era conhecido no referido instituto pelas suas opiniões contra a situação, embora não se lhe conhecessem quaisquer acções em concreto, razão pela qual se determinou não haver lugar a procedimentos nesta fase." Levantou os olhos do auto e fitou Luís.
"Um fala-barato, portanto." O sorriso ardiloso regressou-lhe ao rosto antes de se voltar a concentrar no texto. "No ano seguinte, o nome do mesmo sujeito é referido em autos do processo-crime número 1598/36, respeitante ao homicídio do senhor Constantino Latino em Castelo de Paiva. O
alferes veterinário Luís António Afonso aparece aqui como testemunha num caso em que as suspeitas incidem sobre o senhor Francisco Rodrigues, entretanto desaparecido." O inspector fez um estalido com a língua, como se esgravatasse comida entre os dentes, e os olhos desceram ainda mais no texto. "A última referência é recente. O senhor doutor médico veterinário Luís António Afonso foi ouvido em lugar público da vila de Vinhais a dizer, e passo a citar..." Hesitou, aproximando os olhos da folha para ler melhor a citação. "«No que diz respeito a governar, até o meu cão fazia melhor figura»." Levantou os olhos com uma expressão desdenhosa. "Portanto, por aqui se vê que o cavalheiro pensa que o seu molosso é mais qualificado para governar do que o senhor presidente do Conselho."
Luís quase se engasgou. Tentou situar a conversa e lembrou-se que, de facto, havia dito qualquer coisa naquele sentido durante uma das habituais picardias políticas à mesa de jogo entre dois dos seus parceiros, o doutor Garcia e o doutor Machado.
"Filho da puta do juiz", murmurou entre dentes ao concluir que o doutor Machado era a fonte da informação.
"Como diz?"
"Nada."
"Desculpe, mas o cavalheiro disse alguma coisa, que eu bem ouvi."
Luís suspirou.
"Estava a falar com os meus botões", explicou. "O que eu quero dizer é que essa frase tem um contexto."
"Ah, pois. Com certeza que tem. O contexto é vilipendiar a obra do regime!"
"O contexto emerge de uma conversa em privado. É preciso conhecer toda a conversa para perceber o sentido em que eu fiz essa afirmação."
Os dedos do inspector dançaram entre os papéis, extraindo mais um documento do molho que se encontrava na pasta.
"O contexto está aqui." Acenou com a folha, sem deixar Luís perceber o que nela se encontrava escrito. "É um sumário dessa conversa." Passou os olhos pelas anotações. "Conversa instrutiva, sem dúvida."
"Esse juiz é um cabrão", rosnou Luís, odiando o doutor Machado com todas as forças.
"Pelo contrário, é um homem com muito tino."
O veterinário controlou-se e reprimiu-se a si mesmo. Não estava ali para dizer o que pensava, mas porque fora convocado. Mais valia calar-se e ter daí em diante mais cuidado com tudo o que dizia e fazia em público.
"Foi para me ler o meu dossier que o senhor me convocou aqui a Lisboa?", perguntou, tentando ir direito ao assunto.
O inspector soltou uma gargalhada.
"O cavalheiro está com pressa, hem?" Ajeitou a resma, alinhando as folhas em bloco, e colocou-as dentro da pasta. "Muito bem, vamos ao que interessa. Eu mostrei-lhe um extracto do seu dossier para que o cavalheiro tivesse a perfeita noção de que o trazemos debaixo de olho. Não tem dúvidas sobre isso, pois não?"
"Nenhumas."
"Ainda bem." Arrumou a pasta ao lado. "O cavalheiro deve recordar-se que nos encontrámos pela primeira vez ali no Parque Mayer, estava o cavalheiro agarrado a uma meretriz." Calou-se para ver se o seu interlocutor reagia, mas Luís manteve-se silencioso, escudando-se numa expressão impenetrável. "Mais tarde, quando eu conduzia um inquérito àquela palhaçada ocorrida no Instituto Superior de Medicina Veterinária, apercebi-me, através de conversas, de que o estudante que teria ajudado um dos delinquentes a escapar era justamente o mesmo cavalheiro que eu surpreendera em posições indecorosas no Parque Mayer." Juntou a ponta dos dedos das duas mãos e encostou-lhes o queixo, assumindo uma postura judiciosa. "Seria fácil, como é evidente, deitar-lhe a mão de imediato e fazer-lhe pagar bem cara a afronta que teve a desfaçatez de me fazer na ocasião em que travámos conhecimento." O tom de voz tornou-se magnânimo. "Porém, não fui por esse caminho. Em vez disso, e como competente polícia que, sem falsas modéstias, me considero ser, de imediato lhe tracei um determinado perfil psicológico, percebendo que o cavalheiro um dia ainda me poderia vir a ser útil." Arreganhou os lábios. "Esse dia chegou."