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"O que quer o senhor de mim?"

"O cavalheiro encaixa-se como uma luva nas nossas necessidades operacionais. Como lhe disse há pouco, não passa de um fala-barato, um pretenso intelectual que arrota interjeições contra o regime que o alimenta, mas que, na hora da verdade, está quieto que nem o rato que é. De modo que..."

"Não lhe admito que se refira a mim nesses termos."

"O cavalheiro admitirá isso e muito mais", rosnou o inspector sem levantar a voz. "E, se for minimamente esperto, vai ouvir até ao fim o que tenho para dizer. E é se quer sair daqui inteiro."

A conversa assumia tonalidades veladamente brutais, implícitas nas palavras e sobretudo no tom. Intuindo que era contraproducente reagir às provocações, Luís fez um esforço e manteve-se calado. O que lhe interessava a ele o que aquele cretino pensava ou não de si? Deixasse-o falar...

Sentindo que o seu interlocutor se encontrava plenamente dominado, o inspector retomou a exposição.

"No meu modo de ver as coisas, o cavalheiro pode ser-nos de extrema utilidade. Diz umas coisas contra o regime, o que o deixará decerto bem visto entre os comunistas e os revira-lhistas, mas nada fez de concreto que ponha realmente em causa o Estado Novo, pelo que não está à margem da lei. Assim postas as coisas, encontra-se numa excelente posição para nós, se é que entende o que eu quero dizer..."

A frase ficou a flutuar no ar, extraindo de Luís uma opaca expressão de incompreensão.

"Não, não estou a entender."

O inspector tamborilou com os dedos na pasta cinzenta-clara que continha todo o dossier de Luís.

"O cavalheiro reparou em quão completas são as informações aqui contidas?"

"Sim."

"Sabe como as coligimos?"

"A meterem o nariz na minha vida."

O homem da PVDE sorriu.

"É uma maneira de pôr as coisas", disse. "Na verdade, toda a informação na nossa polícia é recolhida através de fontes múltiplas: escutas telefónicas, intercepção de correio, vigilância de suspeitos e interrogatórios. O problema é que os prevaricadores estão cientes das cautelas que precisam de ter quando falam ao telefone ou escrevem uma carta ou vão a qualquer sítio. E num interrogatório, sobretudo quando é usada alguma severidade, têm tendência a dizer o que pensam que nós queremos saber e não necessariamente o que de facto aconteceu. Daí que eu acredite mais num outro tipo de fonte, uma fonte humana.

Como costumo dizer, para haver uma informação é preciso haver um informador. A grande dificuldade é recrutar as pessoas certas."

Luís olhou para o polícia com uma expressão incrédula.

"A PVDE quer recrutar-me como informador?"

"Deixe-me explicar-lhe uma coisa", retomou Aniceto Silva, contornando a pergunta.

"Nós temos muita gente que se oferece para ser informadora. O problema é que grande parte não serve para essa função, uma vez que as suas opiniões a favor do regime são mais ou menos públicas. O cavalheiro acha que um comunista fala à vontade quando está diante de uma pessoa que já fez afirmações a elogiar Salazar? É óbvio que essas pessoas, por muito boa vontade que tenham, não servem. O que nós precisamos mesmo é de gente de quem os suspeitos não desconfiem, de indivíduos que ao longo da vida tenham proferido declarações contra a situação." Deu uma palmada enfática na secretária. "Esses é que são os bons informadores!"

"O senhor deve estar a brincar comigo..."

O inspector torceu a boca.

"O cavalheiro acha-me com cara de brincalhão?", perguntou. "Receio que isto seja uma coisa muito séria." Voltou-se para o mapa de Portugal pregado na parede. "Sabe, a maior parte da nossa actividade decorre em Lisboa, como é evidente. Mas há muita coisa que se passa na província, porque é aí que muitos agentes subversivos se refugiam na convicção de que nas zonas rurais se encontram menos expostos. Daí que tenhamos necessidade de uma rede de informadores a operar nos meios mais pequenos, como acontece neste caso." Indicou o Norte de Trás-os-Montes.

"Precisamos do cavalheiro para nos ajudar a recolher informações sobre o que se passa em Vinhais e em particular sobre um sujeito que nós consideramos suspeito e andamos a vigiar."

"Quem?"

O inspector pegou numa outra pasta e tirou uma fotografia do interior, que pousou sobre a mesa voltada para o seu interlocutor.

"Este."

Luís reconheceu um dos seus parceiros de jogatanas na sala de chá da Pensão Alves.

"O doutor Garcia?"

"O cavalheiro já deve ter reparado que este advogado exibe uma verborreia acirrada contra a situação", disse Aniceto Silva, devolvendo a fotografia à pasta. "O que talvez não saiba é que este sujeito tem ligações a uma organização secreta e terrorista denominada Frente de Acção Popular, vulgo FAP. Pensamos até que ele está envolvido na elaboração de um panfleto clandestino e subversivo que procura propagar ideias antipatrióticas. Precisamos que uma pessoa da confiança do doutor Garcia nos informe sobre as suas actividades e, se possível, sobre as actividades desta dita Frente de Acção Popular."

O veterinário fez um gesto na direcção da pasta com o seu dossier.

"Precisam de mim para isso? Então e o bufo que vos andou a dar informações sobre mim?

Porque não o usam a ele?"

"A nossa andorinha vai mudar de ninho."

"Não percebo."

"O informador que temos em Vinhais vai ser transferido."

"O juiz Machado vai sair de Vinhais?"

"Quem lhe disse que era o juiz Machado?"

"Não é o juiz Machado?"

"Claro que não! Esse não passa de um tonto, coitado. Voluntarioso, é verdade, mas um tonto.

Além do mais, não se cansa de elogiar a situação. Quem seria o reviralhista ou comunista que confiaria nele?"

O veterinário manteve os olhos cravados no polícia, a mente a fervilhar de ideias. O informador não era o juiz Machado? Então quem era? O doutor Garcia também não podia ser, uma vez que se tratava do suspeito a vigiar. Além do mais, o informador ia pelos vistos ser transferido e, que Luís soubesse, nenhum destes dois planeava mudar-se para qualquer parte. Estreitou os olhos, tentando lembrar-se se haveria alguém que ia sair de Vinhais. Bem, para chefiar o Hospital de Bragança ia o... o....

"O Fernando?"

O inspector recostou-se na cadeira e manteve o olhar fixo no seu interlocutor.

"Não tenho liberdade para identificar o nosso homem, nem isso interessa para o caso. O facto é que..."

"O Fernando?", repetiu Luís, atónito com a conclusão a que de repente chegara. "É ele o... o... o informador?" Custava-lhe acreditar, o seu velho amigo da faculdade andava a dar informações à PVDE, era ele o bufo! "Mas como é isto possível?"

"A identidade do nosso informador não é para aqui chamada", insistiu o inspector. "O

que interessa é que vamos precisar de si para nos informar de qualquer actividade subversiva que ocorra na sua área de actuação." Tirou uma caneta da camisa e começou a garatujar um papel. "O seu nome de código vai ser Alberto. Enviar-nos-á três cartas mensais a relatar o que viu e ouviu. Se achar que uma situação requer a nossa intervenção rápida, telefone-me para este número aqui e diga para virmos buscar a encomenda, código para efectuarmos uma detenção. Para cobrir as suas despesas, receberá uma boa maquia.