— Elas não vão receber você ainda — afirmou Lan, surgindo ao lado de Asmodean, que deu um pulo —, nem a homem algum. — Rand também não ouvira ou vira o Guardião se aproximar, mas apenas virou a cabeça. Até isso parecia um esforço. Parecia ser a cabeça de outra pessoa. — Estão reunidas com Sábias dos Miagoma, dos Codarra, dos Shiande e dos Daryne.
— Os clãs estão vindo até mim — disse Rand com um tom de voz neutro. Só que haviam esperado tempo demais, a ponto de tornar aquele dia mais sangrento. Nunca era daquele jeito nas histórias.
— É o que parece. Mas os quatro chefes só vão falar com você quando as Sábias tiverem terminado de fazer seus arranjos — acrescentou Lan, seco. — Venha. Moiraine pode falar mais que eu sobre o assunto.
Rand balançou a cabeça.
— O que está feito, está feito. Posso ouvir os detalhes mais tarde. Se Han não precisa mais mantê-los longe de nós, então eu preciso dele. Sulin, mande um mensageiro. Han…
— Já acabou, Rand — insistiu o Guardião. — Tudo. Só restam uns poucos Shaido ao sul da cidade. Milhares foram feitos prisioneiros, e a maior parte dos outros está cruzando o Gaelin. Se alguém soubesse onde você estava, a notícia teria sido enviada uma hora atrás. Mas você não parava em lugar algum. Venha e deixe que Moiraine lhe conte.
— Acabou? Nós ganhamos?
— Você ganhou. De vez.
Rand espiou os homens recebendo bandagens, as filas pacientes aguardando para recebê-las, e aqueles já indo embora com elas. As fileiras de gente praticamente imóvel. Moiraine ainda se deslocava ao longo delas, parando aqui e ali, cansada, para Curar. Apenas alguns dos feridos estavam ali, claro. Teriam passado o dia vindo como pudessem, indo embora como e quando fosse possível. Se fosse possível. Nenhum dos mortos estaria por lá. Só uma batalha perdida é mais triste que uma batalha vencida. Rand parecia se lembrar de já ter dito aquilo, muito tempo atrás. Talvez tivesse lido em algum lugar.
Não. Havia gente demais vivendo sob sua responsabilidade para que ele se preocupasse com os mortos. Mas quantos rostos vou reconhecer, como o de Jolien? Eu nunca vou me esquecer de Ilyena, nem se o mundo inteiro pegar fogo!
Franziu a testa e levou uma das mãos à cabeça. Aqueles pensamentos pareciam brotar um sobre o outro, de diferentes lugares. Estava tão cansado que mal conseguia raciocinar. Mas precisava, precisava de pensamentos que não deslizassem quase fora do alcance. Largou a Fonte e o Vazio, e convulsionou quando saidin quase o esmagou naquele momento de recuo. Mal teve tempo de se dar conta do erro. Sem o Poder, a exaustão e a dor se abateram sobre ele.
Ao tombar da sela, estava consciente dos rostos virados em sua direção, das bocas mexendo, das mãos se esticando para segurá-lo, para amortecer sua queda.
— Moiraine! — berrou Lan, a voz oca no ouvido de Rand. — Ele está sangrando muito!
Sulin aninhou a cabeça dele nos braços.
— Aguente firme, Rand al’Thor — pediu, com urgência. — Aguente.
Asmodean não disse nada, mas seu rosto estava sombrio, e Rand sentiu um gotejar de saidin fluindo até ele, vindo do homem. Tudo se apagou.
45
Depois da tempestade
Sentado em um pequeno pedregulho no pé da encosta, Mat se encolheu ao puxar o chapéu de aba larga para baixo e, assim, evitar o sol da manhã. Em parte, para proteger os olhos da luz. Havia outra coisa que não queria ver, apesar de os cortes e machucados não o deixarem esquecer — principalmente o talho de flecha ao longo da têmpora, pressionado pelo chapéu. Um unguento dos alforjes de Daerid estancara o sangramento no local e nas outras partes do corpo, mas tudo ainda doía, e a maioria das lesões ardia. Essa parte ainda pioraria. O calor do dia só estava começando a apertar, mas o suor formava gotículas em seu rosto e já umedecia as roupas de baixo e a camisa. Mat se perguntou se o outono algum dia chegaria a Cairhien. Pelo menos o desconforto evitava que ficasse pensando no quanto estava cansado. Mesmo após uma noite insone — não conseguiria dormir nem em uma cama de penas, e menos ainda em cobertores no chão. Não que Mat quisesse voltar para perto de sua tenda, de qualquer modo.
Que bela de uma maldita confusão. Quase morto, suando feito um porco, sem conseguir encontrar um lugar confortável para esticar as pernas, e sem poder nem ousar ficar bêbado. Sangue e malditas cinzas! Parou de passar o dedo por um talho no casaco que percorria toda a extensão do peito — uma polegada de diferença e aquela lança teria lhe atravessado o coração; Luz, o sujeito era bom! — e afastou do pensamento aquela parte da história. Não que fosse fácil, com tudo que estava acontecendo ao redor.
Pela primeira vez, tairenos e cairhienos não pareciam se importar de ver tendas Aiel por todos os lados. Havia Aiel até no próprio acampamento, e, em um milagre quase tão grande quanto, tairenos se misturavam a cairhienos em meio às fogueiras fumacentas. Não que alguém ali estivesse comendo. As chaleiras não haviam sido postas no fogo, embora Mat sentisse o cheiro de carne assando em algum lugar. Em vez disso, a maioria estava tão bêbada de vinho, conhaque ou do oosquai Aiel quanto possível, gargalhando e comemorando. Perto de onde Mat estava sentado, uma dezena de Defensores da Pedra trajando apenas camisas suadas de manga curta dançava ao som das palmas de dez vezes mais espectadores. Em fila, uns com os braços nos ombros dos outros, dançavam em passos tão velozes que era incrível que nenhum tropeçasse ou chutasse o homem ao lado. Em outro círculo de espectadores próximos a um poste de dez pés — Mat tratou de logo desviar os olhos —, o mesmo número de Aiel estava se divertindo à sua maneira. Mat presumiu que fosse uma dança, já que outro Aiel tocava foles para eles. Saltavam o mais alto que podiam, lançavam um dos pés ainda mais para cima e então pousavam com aquele mesmo pé, voltando a saltar imediatamente, cada vez mais rápido, por vezes rodopiando em pleno ar feito peões, ou dando cambalhotas e mortais para trás. Sete ou oito tairenos estavam sentados tratando de ossos que haviam quebrado ao tentar os movimentos, mas sempre celebrando e gargalhando ensandecidos, passando e repassando um jarro de pedra contendo algum líquido. Em outros pontos, mais homens dançavam e talvez cantavam. Com tanto alvoroço, era difícil dizer. Sem o menor esforço, Mat contou dez flautas, isso sem falar no dobro de flautins, além de um cairhieno magricela com um casaco esfarrapado que tocava um instrumento que parecia metade flauta, metade trompa, com alguns outros formatos estranhos aqui e ali. E havia incontáveis tambores, a maior parte meras panelas golpeadas com colheres.
Em resumo, o acampamento era uma mistura de baile e bagunça. Mat reconhecia a situação, principalmente das memórias que, caso se concentrasse o suficiente, ainda era capaz de atribuir a outros homens. Uma celebração por terem sobrevivido. Uma vez mais, haviam andado nas barbas do Tenebroso e vivido para contar. Mais uma dança no fio da navalha que se encerrava. Quase mortos na véspera, talvez mortos amanhã, mas, naquele dia, vivos, gloriosamente vivos. Mat não estava no clima de celebrações. Para que servia estar vivo, se isso significava viver em uma gaiola?
Balançou a cabeça quando Daerid, Estean e um Aiel ruivo e compacto passaram, trôpegos, um se apoiando no outro. Mal audíveis em meio a todo aquele clamor, Daerid e Estean se revezavam tentando ensinar ao homem mais alto a letra de “Dançando com Jak das Sombras”.