Elayne ficou boquiaberta. Foi só quando tropeçou nos próprios pés que conseguiu dizer:
— Mas eu sou!
— Se você diz — respondeu Birgitte, revirando os olhos para as calças cheias de lantejoulas.
Elayne não pôde fazer nada. Nynaeve manejava a própria língua feito uma agulha, Cerandin era mais teimosa que duas mulas, e agora aquilo. Jogou a cabeça para trás e soltou um grito frustrado.
Quando o som se dissipou, até os animais haviam se calado. Tratadores de cavalo ali por perto a encaravam. Elayne os ignorou. Nada podia irritá-la agora. Estava calma feito gelo, em pleno controle de si mesma.
— Foi um grito de socorro — indagou Birgitte, inclinando a cabeça — ou você está com fome? Acho que consigo encontrar uma ama-de-leite em…
Elayne se afastou depressa, com um rosnado que encheria de orgulho qualquer dos leopardos.
48
Despedidas
Assim que estava de volta ao carroção, Nynaeve se trocou e pôs um vestido decente, com alguns resmungos exasperados por ter que desabotoar uma fileira de botões e abotoar outra sozinha. A lã cinza simples, boa e bem-cortada, ainda que pouco elaborada, passaria despercebida em quase todos os lugares, mas era, decididamente, mais quente. Ainda assim, era boa a sensação de voltar a se vestir com decência. Também era um pouco estranha, como se estivesse usando roupas demais. Devia ser culpa do calor.
Nynaeve se ajoelhou rapidamente à frente do pequeno fogão de tijolinhos com chaminé de metal e abriu a porta de ferro que guardava seus pertences de valor.
Enfiou o anel de pedra retorcida dentro da bolsinha em sua cintura, junto com o de Lan e o anel de ouro da Grande Serpente. O cofrinho dourado contendo as gemas que Amathera lhe dera foi parar na algibeira de couro junto das bolsinhas com as ervas que pegara de Ronde Macura, em Mardecin, e do pilãozinho e do almofariz para prepará-las. Nynaeve tocou essas últimas bolsas só para se lembrar do que cada uma continha, de cura-tudo à pavorosa raiz-dupla. As cartas-de-direitos também estavam ali, além de três das seis bolsas, nenhuma tão gorducha quanto antes, depois de a viagem do conjunto itinerante até Ghealdan. Luca podia até não estar interessado em seus cem marcos de ouro, mas não sentira nenhum remorso em coletar o valor das despesas. Uma das cartas, que autorizava seu portador a fazer o que bem entendesse em nome do Trono de Amyrlin, estava junto dos anéis. Nada além de boatos vagos a respeito de algum tipo de problema em Tar Valon chegara a Samara. Nynaeve talvez encontrasse serventia para a carta, mesmo com a assinatura de Siuan Sanche. A caixa de madeira escura ela deixou onde estava, junto de três das bolsas, bem como a bolsa de juta crua contendo o a’dam — naquilo, ela certamente não tinha o menor desejo de tocar — e a flecha de prata que Elayne achara na noite do encontro catastrófico com Moghedien.
Por um momento, Nynaeve franziu o cenho ao olhar para a flecha, pensando em Moghedien. Era melhor mesmo fazer o que fosse preciso para evitá-la. Era melhor. Eu a derrotei uma vez! E, na segunda, terminara pendurada feito uma linguiça na cozinha. Se não fosse Birgitte… Ela fez a escolha dela. Era o que a mulher dissera, e era verdade. Eu poderia derrotá-la de novo. Poderia. Mas, se eu falhar… Se falhar…
Nynaeve só estava tentando evitar a bolsa de camurça enfiada mais no fundo, e sabia disso, embora tanto a bolsa quanto a ideia de voltar a ser derrotada por Moghedien fossem igualmente horríveis. Ela respirou fundo, enfiou a mão cautelosamente e pegou a bolsa, puxando pelos cordões, e soube que estivera enganada. O mal pareceu inundá-la, mais forte do que nunca, como se o Tenebroso estivesse mesmo tentando escapar pelo selo de cuendillar dentro da bolsa. Era melhor passar o dia pensando em ser derrotada por Moghedien. Havia um mundo de diferença entre o pensamento e a realidade. Só podia ser coisa da sua imaginação — não sentira nada daquilo em Tanchico —, mas Nynaeve desejou que pudesse deixar Elayne carregar o objeto também. Ou deixá-lo ali.
Pare de agir feito tola, disse a si mesma com firmeza. Ele mantém a prisão do Tenebroso trancada. Você só está deixando a sua imaginação perder as estribeiras. Ainda assim, porém, largou a bolsa em cima do vestido vermelho que Luca confeccionara, deixando-a cair como se fosse um rato morto há uma semana, e então, com mais do que um pouco de pressa, enrolou e amarrou o objeto firmemente. O pacote sedoso foi parar no meio de um monte de roupas que Nynaeve levaria consigo, dentro de seu bom manto de viagem cinza. Umas poucas polegadas de distância foram o bastante para acabar com aquela sensação sombria de vazio, mas, de qualquer jeito, desejou lavar as mãos. Se ao menos não soubesse que aquilo estava ali… Estava sendo uma tola. Elayne gargalharia dela, Birgitte também. E com razão.
Na realidade, as roupas que queria manter somavam dois embrulhos, e Nynaeve lamentou todo e qualquer ponto de costura que precisaria deixar para trás. Até a seda azul decotada. Não que quisesse voltar a usar algo parecido um dia — com certeza não pretendia nem tocar no vestido vermelho, não até entregar o pacote intacto para alguma Aes Sedai em Salidar —, mas não pôde deixar de fazer os cálculos mentais de quanto somariam as roupas, os cavalos e os carroções que tinham abandonado desde que partiram de Tanchico. Fora a carruagem e os barris de tintura. Até Elayne teria franzido o cenho se um dia chegasse a pensar no assunto. Aquela jovem acreditava que sempre haveria dinheiro quando enfiasse a mão na bolsa.
Nynaeve ainda estava preparando a segunda trouxa quando Elayne voltou e, em silêncio, se trocou e pôs um vestido de seda azul. Continuou calada, a não ser pelos resmungos quando precisou flexionar os braços atrás do corpo para abotoar a roupa. Caso ela tivesse pedido, Nynaeve teria ajudado, mas, como não aconteceu, ficou observando-a em busca de machucados enquanto ela se trocava. Pensava ter ouvido um grito, minutos antes de Elayne aparecer, e, se ela e Birgitte tivessem chegado às vias de fato… Nynaeve não tinha certeza se ficou contente por não encontrar nenhum machucado. Uma embarcação as confinaria tanto quanto aquele carroção, de certa forma, e isso não seria nada agradável caso as duas ficassem saindo no tapa. Por outro lado, poderia ter sido bom elas extravasarem um pouco de seus temperamentos animalescos.
Elayne não disse uma palavra enquanto recolhia seus pertences, nem mesmo quando Nynaeve perguntou, em tom bastante cordial, aonde ela tinha ido tão afobada. Aquilo só rendeu um queixo empinado e um olhar frio, como se a garota pensasse que já estava ocupando o trono da mãe.
Às vezes, Elayne ficava muito quieta, e de um jeito que dizia bem mais do que palavras seriam capazes. Ao encontrar as três bolsas restantes, ela fez uma pausa antes de pegá-las, e a temperatura dentro do carroção pareceu baixar consideravelmente, embora tais bolsas fossem apenas a parte que lhe cabia. Nynaeve estava cansada de suas reclamações a respeito de como ela distribuía as moedas. Que Elayne observasse o dinheiro se esvaindo aos poucos e percebesse que em algum momento ele poderia acabar. Todavia, quando a garota notou que o anel sumira e que a caixa escura ainda estava ali…
Elayne suspendeu a caixa, destampou-a e estreitou os lábios enquanto analisava o conteúdo: os outros dois ter’angreal que elas haviam trazido de Tear. Um disquinho de ferro trabalhado nos dois lados com uma espiral estreita e uma placa fina com cinco polegadas de comprimento, aparentemente de âmbar e mais dura que aço, com uma mulher adormecida entalhada por dentro. Ambos poderiam ser usados para adentrar Tel’aran’rhiod, embora sem tanta facilidade ou tão bem quanto com o anel. Para fazer uso de qualquer um dos dois, era necessário canalizar Espírito, o único dos Cinco Poderes que podia ser canalizado durante o sono. Deixá-los com Elayne parecera o correto a Nynaeve, já que estava assumindo o cuidado do anel. Elayne fechou a caixa com um clique súbito, encarou-a com frieza e enfiou o objeto em uma de suas trouxas, junto da flecha de prata. Seu silêncio era estrondoso.