— Admito não conhecer a fundo os costumes de vocês, mas os nossos não são iguais aos daqui. — Por que estou defendendo Rand? Ele é que deveria apanhar com vara! Mas a honestidade a fez prosseguir. — Até os homens Aiel têm o direito de dizer não, quando as mulheres fazem a proposta.
— Você e ela são quase-irmãs, assim como eu e você — protestou Aviendha, diminuindo o passo antes de voltar a apertar o ritmo. — Você não me pediu para cuidar dele para Elayne? Não quer que Rand seja dela?
— Claro que quero. Se ele a quiser.
Aquilo não era bem verdade. Egwene desejava que Elayne tivesse toda felicidade possível, apaixonada como estava pelo Dragão Renascido, e faria de tudo, exceto amarrar Rand pelos pés e pelas mãos, para vê-la conseguir o que queria. Talvez até pensasse em amarrá-lo, se fosse mesmo necessário. Admitir isso, porém, era outra coisa. As Aiel eram bem mais diretas do que ela se permitia ser.
— Caso contrário, não seria certo.
— Ele pertence a ela — afirmou Aviendha, determinada.
Egwene suspirou. Aviendha simplesmente não se esforçava para entender nenhum costume que não os dela. A Aiel ainda estava chocada por Elayne não ter pedido Rand em casamento e por um homem poder fazer o pedido.
— Tenho certeza de que amanhã as Sábias vão ouvir a voz da razão. Elas não podem obrigar você a dormir no quarto de um homem.
Claramente surpresa, Aviendha a encarou. Por um momento, sua elegância a abandonou, e ela deu uma topada com o dedão no chão irregular. O infortúnio gerou alguns xingamentos que teriam feito até os condutores dos carroções de Kadere prestarem atenção e forçado Bair a apelar para o espigão-azul, mas não a impediu de continuar correndo.
— Não entendo por que isso lhe incomoda tanto — disse ela após o último palavrão. — Já dormi ao lado de homens muitas vezes durante ataques, chegando até a compartilhar cobertores caso a noite estivesse muito fria, mas você se incomoda por eu dormir a dez pés dele. Isso faz parte dos seus costumes? Notei que você não se banha na companhia de homens na tenda de vapor. Não confia em Rand al’Thor? Ou é em mim que você não confia? — Ao final, sua voz se reduzira a um sussurro preocupado.
— Claro que eu confio em você — protestou Egwene de maneira acalorada. — E nele. Mas é que… — Ela foi baixando a voz, sem saber como continuar. As noções que os Aiel tinham de comportamento apropriado às vezes eram mais rígidas do que as que Egwene aprendera na infância, mas, em outras ocasiões, eles faziam coisas que deixariam o Círculo das Mulheres de sua aldeia divido entre desmaiar ou fazer uso de uma vara bem robusta. — Aviendha, se sua honra estiver envolvida de alguma forma… — O assunto era delicado. — Se você explicar para as Sábias, tenho certeza de que elas não vão lhe obrigar a agir em detrimento da sua honra.
— Não há o que explicar — afirmou a outra mulher, sem rodeios.
— Sei que não compreendo o ji’e’toh… — começou Egwene, fazendo Aviendha rir.
— Você diz não compreender, Aes Sedai, mas demonstra viver sob ele.
Egwene lamentava sustentar aquela mentira para Aviendha. Tinha dado muito trabalho fazer a amiga chamá-la apenas de Egwene, e às vezes ela ainda escorregava, mas precisava mentir para todos, se queria garantir que as pessoas acreditariam.
— Você é Aes Sedai e é forte o bastante com o Poder para derrotar Amys e Melaine juntas — continuou Aviendha —, mas disse que obedeceria, então esfrega panelas quando elas lhe mandam esfregar panelas e corre quando elas lhe dizem para correr. Você pode até não conhecer o ji’e’toh, mas o segue.
Claro que não era a mesma coisa. Egwene trincava os dentes e fazia o que lhe mandavam porque aquela era a única maneira que tinha de aprender a caminhar nos sonhos, e queria aprender — aprender tudo — mais do que qualquer outra coisa que pudesse imaginar. Sequer cogitar viver sob aquela bobagem de ji’e’toh era uma idiotice. Fazia o que tinha de fazer, e só quando e porque precisava.
As duas estavam chegando ao local de onde haviam partido.
— Uma volta — declarou Egwene, quando seu pé atingiu o ponto exato.
Então continuou a correr em meio à escuridão, longe dos olhos de todos, exceto dos de Aviendha. Sem ninguém para verificar caso ela voltasse para a tenda naquele mesmo instante. Aviendha não a deduraria, mas em momento algum passou pela cabeça de Egwene parar de correr antes da quinquagésima volta.
6
Portões
Rand acordou na mais completa escuridão e permaneceu deitado sob os cobertores, tentando descobrir o que o despertara. Fora alguma coisa. Não o sonho, onde ensinava Aviendha a nadar em um lago da Floresta das Águas, em sua terra natal, Dois Rios. Outra coisa. Então aconteceu de novo: um sopro fraco de cheiro pútrido entrando por debaixo da porta. Na verdade, não se tratava de um cheiro, e sim um senso de alteridade, mas a sensação era essa. Rançoso, como um cadáver de uma semana em água parada. E voltou a desaparecer, mas, desta vez, não totalmente.
Jogando os cobertores para o lado, Rand se levantou já se envolvendo em saidin. Dentro do Vazio, preenchido pelo Poder, sentia o corpo tremer, mas o frio parecia distante, não nele. Com todo o cuidado, abriu a porta e saiu do quarto. Janelas em arco nas duas extremidades do corredor deixavam entrar a luz do luar. Depois do breu total de dentro do quarto, era quase como a luz do dia. Nada se movia, mas Rand sentiu… algo… se aproximando. Algo mau. Parecido com a mácula que rugia dentro dele, no Poder.
Uma das mãos foi para o bolso do casaco, em busca da pequena imagem cinzelada de um homenzinho redondo segurando uma espada atravessada nos joelhos. Um angreal. Com ela, Rand conseguiria canalizar com segurança mais Poder do que em geral poderia dar conta. Quem quer que tivesse enviado o ataque contra ele, não sabia com quem estava lidando. Nunca deveriam ter permitido que despertasse.
Por um momento, Rand hesitou. Poderia lutar contra o que quer que tivessem lhe enviado, mas achava que o inimigo ainda estava lá embaixo. Lá embaixo, onde, pelo silêncio, as Donzelas continuavam dormindo. Com sorte, não seriam importunadas, a menos que Rand corresse para lá e começasse uma luta no meio delas. Isso certamente as acordaria, e nenhuma das mulheres ficaria apenas assistindo. Lan dizia que, se possível, era melhor escolher o território e fazer o inimigo vir procurá-lo.
Rand sorriu, e foi correndo com as botas pesadas até a escadaria mais próxima, subindo até atingir o andar mais alto. O nível mais elevado do edifício era uma ampla câmara de teto levemente curvo e finas colunas com ranhuras espiraladas espalhadas pelo ambiente. Janelas em arco, sem vidro, circundavam o local e inundavam todos os cantos de luar. A poeira, o cascalho e a areia pelo chão ainda exibiam marcas fracas de suas próprias pegadas, deixadas na única vez em que subira até ali, e mais nada. Era perfeito.
Foi até o centro do aposento com passos largos e plantou-se sobre o mosaico de dez pés de largura com o antigo símbolo das Aes Sedai. Um local propício. “Ele conquistará sob este símbolo.” Era o que dizia a Profecia de Rhuidean. Rand se posicionou com uma perna de cada lado da sinuosa linha divisória, uma bota na lágrima preta que agora chamavam de Presa do Dragão, que representava o mal, e a outra na branca, conhecida como Chama de Tar Valon. Alguns diziam que representava a Luz. Um local apropriado para encarar aquele ataque: entre a Luz e a escuridão.
A sensação fétida ficou ainda mais forte, e um cheiro de enxofre queimado tomou o ar. De repente, esgueirando-se das escadas feito sombras do luar, coisas se moveram pelas extremidades da câmara. Lentamente, o movimento tomou a forma de três cachorros negros do tamanho de pôneis e mais escuros que a noite. Com olhos prateados brilhantes, as bestas o circularam com cautela. Tomado pelo Poder, Rand conseguia ouvir o coração das criaturas batendo feito um martelar surdo de tambores. No entanto, não era possível ouvir sua respiração. Talvez não respirassem.