Rand canalizou, e uma espada surgiu em suas mãos: a lâmina ligeiramente curva parecia ter sido forjada a fogo, e havia uma garça entalhada. Esperara por um Myrddraal ou algo ainda pior que os Sem-olhos, mas, para cães, ainda que fossem Crias da Sombra, a espada bastaria. Quem quer que os tivesse mandado, não o conhecia. Lan dissera que Rand já estava bem perto de atingir o nível de um mestre espadachim, e o Guardião era suficientemente econômico com os elogios para fazê-lo pensar que talvez já tivesse até superado esse nível.
Com rosnados que pareciam ossos sendo triturados, os cachorros, mais rápidos que cavalos a galope, se lançaram contra ele em três frentes.
Rand não se moveu até as criaturas estarem bem próximas, e então, se transformando em um com a espada, fluiu de movimento em movimento, como se dançasse. Em um piscar de olhos, Redemoinho na Montanha se tornou O Vento Sopra Sobre a Muralha, que se tornou Abrindo o Leque. Grandes cabeças pretas saíram voando dos corpos negros, os dentes gotejantes, tais como aço polido, ainda à mostra enquanto quicavam pelo chão. Já estava saindo do mosaico enquanto os vultos escuros ainda desabavam em um amontoado de sangue e espasmos.
Rindo sozinho, Rand se desfez da espada, embora tenha se mantido agarrado a saidin, ao Poder enfurecido, à doçura e à mácula. O desdém deslizava pela parte externa do Vazio. Cães. Crias da Sombra, sim, mas, ainda assim, apenas… As risadas cessaram.
Os cães mortos e suas cabeças derretiam devagar, transformando-se em poças de sombra líquida que tremiam de leve, como se estivessem vivas. O sangue, espalhado por todo o chão, estremecia. De repente, as poças menores escorreram em filetes viscosos por todo o piso e se uniram à maior, que deslizava do mosaico e crescia cada vez mais, até três enormes cachorros negros voltarem a surgir, babando e rosnando enquanto pernas imensas ganhavam forma sob os corpos.
Rand não sabia por que se sentia levemente surpreso no exterior do vazio. Cães, sim, mas Crias da Sombra. Quem quer que os tivesse mandado, não fora tão descuidado quanto imaginara. Mas ainda não o conheciam.
Em vez de buscar a espada de novo, Rand canalizou da maneira como se lembrava de ter feito certa vez, muito tempo atrás. Uivando, os enormes cachorros saltaram, e um facho espesso de luz branca disparou de suas mãos feito aço derretido, feito fogo líquido. Com ele, Rand varreu as criaturas, que por um instante se tornaram estranhas sombras de si mesmas, com todas as cores invertidas, mas logo se transformando em pequenas partículas reluzentes que foram se fragmentando em partes cada vez menores, até não restar mais nada.
Com um sorriso sinistro, Rand soltou o facho de luz que havia criado. Uma barra de luz roxa ainda parecia lhe transpor a visão, como uma imagem residual.
No outro lado da grande câmara, um pedaço de uma das colunas se estatelou nos azulejos do piso. Nos locais que a barra de luz atingira — ou o que quer que fosse, já que não era exatamente luz —, faixas perfeitas haviam sumido das colunas. Um enorme corte se estendia por metade da largura da parede logo atrás.
— Algum deles mordeu ou sangrou em você?
Rand se virou ao ouvir a voz de Moiraine. Absorto pelo que acabara de fazer, não ouvira seus passos subindo a escada. A mulher segurava as saias com as duas mãos, perscrutando-o, o rosto obscurecido sob o luar. Ela, assim como ele, devia ter sentido a presença daquelas coisas, mas, para estar ali em tão pouco tempo, devia ter corrido.
— As Donzelas deixaram você passar? Se tornou uma Far Dareis Mai, Moiraine?
— Elas me garantem alguns privilégios de uma Sábia — respondeu a mulher, mais que depressa, a impaciência bem crua em sua voz costumeiramente melodiosa. — Disse para as guardas que precisava falar com você urgentemente. Agora me responda! Os Cães das Trevas o morderam ou espirraram sangue em você? A saliva deles encostou na sua pele?
— Não — respondeu Rand, hesitante. Cães das Trevas. O pouco que ouvira falar deles viera de histórias antigas, do tipo contado para aterrorizar crianças nas terras do sul. Alguns marmanjos também acreditavam nelas. — Por que está tão preocupada com uma mordida? Você poderia Curá-la. Isso significa que o Tenebroso está livre? — Preso ao Vazio como estava, até o medo era algo distante.
As histórias que Rand ouvira diziam que os Cães das Trevas passavam as noites na Caçada Selvagem, em que o próprio Tenebroso era o caçador. Eles não deixavam rastros nem na terra mais macia, só nas pedras, e não paravam até serem defrontados e derrotados, ou até estarem diante de água corrente. Segundo contavam, as encruzilhadas eram lugares particularmente perigosos para encontrá-los, em especial logo depois do pôr do sol ou momentos antes do amanhecer. Àquela altura, Rand já vira muitas dessas histórias antigas se materializarem, e acreditava que qualquer uma poderia ser verdadeira.
— Não, não é isso, Rand. — Moiraine parecia estar recuperando o autocontrole. A voz voltara a soar como sinos de prata, calma e fria. — Eles são apenas outro tipo de Crias da Sombra, algo que nunca deveria ter sido criado. Mas a mordida deles significa uma morte tão certa quanto uma adaga no coração, e eu não acho que seria capaz de Curar uma ferida assim antes que ela matasse você. O sangue e até a saliva dessas criaturas são venenosos. Um pingo na pele pode matar lentamente, e com muita dor nos instantes finais. Você teve sorte de serem só três. Ou matou mais alguns antes de eu chegar? As matilhas costumam ser maiores, com dez ou doze cachorros, pelo que dizem os registros que sobraram da Guerra da Sombra.
Matilhas maiores. Ele não era o único alvo em Rhuidean para algum dos Abandonados…
— Precisamos conversar sobre o que você usou para matá-los — começou Moiraine, mas Rand já estava correndo o mais rápido que podia, ignorando os apelos da mulher para saber aonde ele estava indo e por quê.
Desceu os lances de escada e atravessou corredores escuros onde Donzelas sonolentas, despertadas pelo som de suas botas, o observavam consternadas dos quartos iluminados pelo luar. Rand atravessou as portas da frente, onde Lan aguardava, inquieto, na companhia das duas mulheres que montavam guarda, levando nos ombros o manto furta-cor de Guardião que o fazia se confundir com a noite.
— Onde está Moiraine? — gritou o homem, assim que ele passou correndo. Rand, porém, saltava dois enormes degraus de uma só vez e não deu respostas.
Quando chegou ao edifício que procurava, a ferida lateral semicicatrizada contraía feito um punho, provocando uma dor de que ele mal se dava conta de sentir, dentro do Vazio. O prédio ficava na extremidade de Rhuidean, afastado da esplanada e tão longe do acampamento que Moiraine compartilhava com as Sábias quanto possível sem que se saísse da cidade. Os andares superiores haviam desabado, formando uma montanha de escombros que se espalhava até a terra rachada além do pavimento. Apenas os dois andares inferiores permaneciam intactos. Rejeitando os apelos do próprio corpo para fazê-lo se curvar à dor, Rand entrou no local, ainda em disparada.
No passado, a grande antecâmara, circundada por uma varanda de pedra, havia sido alta. Agora era ainda mais, aberta para o céu noturno, o piso de pedras pálidas coberto pelos escombros do desabamento. Na varanda, sob a sombra da lua, três Cães das Trevas erguidos nas patas traseiras arranhavam e mordiam uma porta revestida de bronze que tremia com o ataque das criaturas. O cheiro de enxofre queimado empesteava o ar.
Rand se lembrou do que acontecera antes e se desviou para o lado enquanto canalizava, o facho de fogo líquido branco rasgando o ar em direção à porta e destruindo as Crias da Sombra. Desta vez, tentara fazer menos estragos, concentrando a destruição nos Cães das Trevas, mas a grossa parede na extremidade oposta da câmara apresentava um rombo encoberto pela escuridão. Achou que não chegara a atravessar a parede — sob o luar, era difícil afirmar —, mas teria de refinar seu controle sobre aquela arma.