Espontâneas, indesejadas, as lembranças da penúltima vez em que ousara empunhar Callandor retornaram, as imagens flutuando além do Vazio.
O corpo da menina de cabelos escuros, pouco mais que uma criança, estava esparramado, os olhos arregalados encarando o teto, sangue escuro no decote do vestido, onde um Trolloc cravara a espada.
O Poder estava dentro dele. Callandor cintilava, e ele era o Poder. Canalizou, direcionando fluxos para o corpo da criança, buscando, tentando, revirando. A menina deu uma guinada e se levantou, os braços e pernas estranhamente rígidos e desconjuntados.
“Rand, você não pode fazer isso!”, gritou Moiraine. “Não isso!”
Respirar. Ela precisa respirar. O peito da garota subia e descia. Coração. Tem que bater. O sangue, já grosso e escuro, jorrou da ferida no peito. Viva. Viva, que se queime! Sua mente uivava. Eu não queria que fosse tarde demais. Os olhos dela o encararam, embotados. Sem vida. Lágrimas desciam pelo rosto de Rand.
Ele fez o que pôde para afastar as memórias. Mesmo envolto no Vazio, elas eram dolorosas. Com todo aquele Poder… Com todo aquele Poder, ele não podia confiar que faria o certo. “Você não é o Criador,” lhe dissera Moiraine, ao lado daquela criança. Mas com aquela estatueta masculina, com apenas metade de seu poder, Rand certa vez fizera as montanhas se moverem. Com muito menos, com apenas Callandor, tivera certeza de que podia retroceder a Roda, fazer uma criança morta reviver. Não era apenas o Poder Único que o seduzia; mas também sua força. Rand deveria destruir as duas peças. Em vez disso, voltou a tecer os fluxos, reajustou as armadilhas.
— O que está fazendo? — perguntou uma voz feminina, no momento em que a parede voltou a parecer inteira.
Amarrando os fluxos depressa — além do nó, com suas próprias surpresas letais —, Rand recolheu o Poder em si e se virou.
Perto de Lanfear, vestida de branco e prata, Elayne, Min ou Aviendha pareceriam quase comuns. Apenas seus olhos escuros já eram suficientes para fazer um homem entregar a própria alma. Com a mera visão daquela mulher, o estômago de Rand se contraiu até deixá-lo com vontade de vomitar.
— O que você quer? — questionou.
Certa vez, bloqueara tanto Egwene quanto Elayne da Fonte Verdadeira, mas não conseguia lembrar como. E, se Lanfear pudesse tocar a Fonte, Rand teria mais chances de agarrar o vento com as mãos do que de mantê-la prisioneira. Um facho do fogo devastador e… Não conseguiria. Ela era um dos Abandonados, mas a lembrança da cabeça de uma mulher rolando pelo chão o deixava paralisado.
— Você tem dois deles — disse ela, enfim. — Pensei ter visto uma… Um é uma mulher, não é? — O sorriso de Lanfear poderia parar o coração de um homem e deixá-lo grato por isso. — Está começando a considerar meu plano, não está? Com estes dois objetos, e juntos, os outros Escolhidos vão se ajoelhar a nossos pés. Podemos suplantar até o Grande Senhor, desafiar o Criador. Nós…
— Você sempre foi ambiciosa, Mierin. — A voz de Rand soou rouca aos próprios ouvidos. — Por que acha que me afastei de você? Não foi por Ilyena, não importa o que prefira pensar. Meu coração já não era seu muito antes de eu conhecê-la. Você é pura ambição. Só queria saber de poder. Você me enoja!
A mulher o encarou, as mãos apertando a barriga com força, os olhos escuros maiores que o normal.
— Graendal disse… — começou ela, a voz fraca. Engolindo em seco, tentou de novo. — Lews Therin? Eu te amo, Lews Therin. Sempre amei e sempre vou amar. Você sabe disso. Tem que saber!
O rosto de Rand estava rígido como uma rocha; torceu para que isso camuflasse o choque. Não sabia de onde as próprias palavras tinham vindo, mas, ao que parecia, se recordava de Lanfear. Uma lembrança turva, do passado. Eu não sou Lews Therin Telamon!
— Sou Rand al’Thor! — retrucou com severidade.
— Claro que é. — Analisando-o, a mulher assentiu, hesitante. A postura tranquila retornou. — Claro. Asmodean tem lhe contado coisas sobre a Guerra do Poder e sobre mim. É mentira. Você me amava. Até que Ilyena, aquela vagabunda de cabelos amarelos, roubou você. — Por alguns instantes, a raiva transformou o rosto da mulher em uma máscara retorcida. Rand não achou que ela tivesse se dado conta disso. — Você sabia que Asmodean apartou a própria mãe? É o que hoje chamam de estancar. Ele a apartou, e deixou que um Myrddraal a levasse embora aos gritos. Confia em um homem desses?
Rand gargalhou.
— Depois que capturei Asmodean, você me ajudou a prendê-lo para que fosse obrigado a me ensinar. E agora vem dizer que não posso confiar nele?
— Para ensinar. — A mulher bufou com desdém. — Ele vai fazer isso porque sabe que está preso a você. Mesmo que conseguisse convencer os outros de que tem sido mantido prisioneiro, eles ainda acabariam com Asmodean, e ele sabe disso. O cão mais fraco da matilha geralmente sofre esse destino. Além disso, de vez em quando acompanho os sonhos dele. Asmodean sonha com você triunfando contra o Grande Senhor e ele ficando no topo, a seu lado. Às vezes, sonha comigo. — O sorriso da mulher insinuava que aqueles sonhos eram prazerosos para ela, mas nem tanto para Asmodean. — Mas ele vai tentar fazer você se voltar contra mim.
— Por que veio até aqui? — indagou Rand. Voltar-se contra ela? Lanfear com certeza estava tomada pelo Poder naquele exato momento, pronta para blindá-lo à menor suspeita de que ele pudesse tentar qualquer coisa. Ela já fizera isso antes, e com uma facilidade humilhante.
— Gosto de ver você assim. Arrogante e orgulhoso, cheio da própria força.
Certa vez, ela dissera que gostava de vê-lo inseguro, que Lews Therin fora arrogante demais.
— Por que veio até aqui?
— Foi Rahvin quem mandou os Cães das Trevas atrás de você hoje à noite — informou ela tranquilamente, apoiando as mãos na cintura. — Eu teria vindo mais cedo para ajudar, mas ainda não posso deixar os outros saberem que estou do seu lado.
Do lado dele. Uma das Abandonadas o amava, ou ao menos amava o homem que ele fora três mil anos antes, e só desejava que ele entregasse a alma para a Sombra e governasse o mundo ao lado dela. Ou um degrau abaixo dela, pelo menos. Isso, e tentar tomar o lugar tanto do Tenebroso quanto do Criador. Será que Lanfear era completamente louca? Ou será que o poder daqueles dois imensos sa’angreal poderia realmente ser tão grande quanto ela afirmava? Aquele era um rumo que Rand preferia que seus pensamentos não tomassem.
— Por que Rahvin me atacaria agora? Asmodean diz que ele só pensa nos próprios interesses, que preferiria ficar de lado até mesmo na Última Batalha, se pudesse, e esperar que o Tenebroso me destrua. Por que não Sammael ou Demandred? Asmodean diz que eles me odeiam. — Não a mim. Odeiam Lews Therin. Para os Abandonados, porém, era a mesma coisa. Por favor, Luz, eu sou Rand al’Thor. Tratou de afastar uma súbita lembrança daquela mulher em seus braços, ambos jovens e ainda descobrindo as coisas que eram capazes de fazer com o Poder. Eu sou Rand al’Thor! — Por que não Semirhage, ou Moghedien, ou Graen…?
— Mas agora você está prejudicando os interesses dele. — A mulher gargalhou. — Não sabe onde ele está? Em Andor, justamente em Caemlyn. Quem manda lá agora é ele, só não oficialmente. Morgase sorri e dança para Rahvin, assim como mais meia dúzia de outras mulheres. — Os lábios de Lanfear se curvaram de desgosto. — Ele tem homens vasculhando as cidades e o campo para encontrar novas belezinhas para sua coleção.