— Então também vamos para o Passo — anunciou, por fim.
— Caso ele pretenda atravessar, não temos como alcançá-lo — avisou Erim.
— Se qualquer um dos outros clãs se juntar a ele, ficaremos encurralados como vermes ao sol — acrescentou Han, amargamente.
— Não vou ficar aqui sentado esperando para descobrir — decidiu Rand. — Se eu não puder alcançar Couladin, pretendo chegar a Cairhien logo depois dele. Ergam as lanças. Partiremos logo que amanhecer, o mais rápido possível.
Fazendo aquela estranha reverência Aiel usada apenas nas ocasiões mais formais, com um pé à frente e uma mão estendida, os chefes partiram. Apenas Han se pronunciou.
— Rumo à própria Shayol Ghul.
7
Uma partida
Bocejando em meio ao início cinzento da manhã, Egwene montou a égua cor de neblina e teve que guiar as rédeas com habilidade enquanto Bruma investigava os arredores. Fazia semanas que ninguém montava o animal. Os Aiel não só preferiam as próprias pernas, como evitavam montarias quase que completamente, embora usassem cavalos e mulas de carga. Mesmo que houvesse madeira suficiente para a construção de carroções, o terreno do Deserto não era amigável com as rodas, conforme mais de um mascate aprendera, para o próprio azar.
Ela não estava ansiosa pela longa jornada rumo ao oeste. Àquela hora, as montanhas escondiam o sol, mas o calor só aumentaria depois que ele se erguesse totalmente, e não haveria nenhuma tenda conveniente na qual mergulhar quando a noite caísse. Egwene também não estava certa de que a indumentária Aiel fosse apropriada para cavalgar. O xale, usado na cabeça, sempre funcionava surpreendentemente bem na proteção contra o sol, mas aquelas saias volumosas acabariam expondo suas pernas até a altura das coxas, caso não prestasse atenção. Isso era preocupante tanto pelas bolhas quanto pelo recato. O sol é um dos problemas e… Um mês longe das selas não deviam tê-la amaciado tanto assim. Esperava que não, ou aquela seria uma jornada muito longa.
Assim que acalmou Bruma, Egwene percebeu que Amys a encarava e trocou um sorriso com a Sábia. Toda aquela correria da noite anterior não era o motivo para estar sonolenta. Na verdade, o exercício a ajudara a dormir mais profundamente. Ela conseguira encontrar os sonhos de Amys na noite anterior, e, para celebrar, as duas haviam bebido chá no próprio sonho, no Forte das Pedras Frias, ao anoitecer, com crianças brincando nos pátios entre plantações e uma agradável brisa soprando pelo vale enquanto o sol se punha.
Claro que aquilo não teria sido o bastante para lhe deixar cansada, mas Egwene ficara tão exultante que, ao sair dos sonhos de Amys, não parara. Não podia, não naquele momento, independentemente do que a sábia tivesse dito. Havia sonhos por toda parte, embora, na maioria dos casos, ela não tivesse ideia de quem os estava sonhando. Na maioria, mas não em todos. Melaine andara sonhando que amamentava um bebê, e Bair sonhara com um de seus falecidos maridos, os dois ainda jovens e louros. Egwene tomara o cuidado especial de não entrar nesses. As Sábias teriam notado a intrusão imediatamente, e a garota sentiu um arrepio ao imaginar o que teriam feito antes de deixá-la sair.
Os sonhos de Rand eram um desafio, claro. Um desafio que ela não podia deixar de encarar. Agora que era capaz de borboletear de sonho em sonho, como poderia não fazer uma tentativa onde as Sábias haviam falhado? Contudo, as tentativas de penetrar os sonhos dele pareciam uma corrida desabalada em direção a uma parede de pedra invisível. Sabia que os sonhos de Rand estavam do outro lado e tinha certeza de que podia encontrar um jeito de atravessar, mas não tinha nada com o que trabalhar, nada para dar uma bisbilhotada. Uma parede feita de nada. Era um problema sobre o qual pretendia se debruçar até encontrar uma solução. Quando metia algo na cabeça, Egwene podia ser tão persistente quanto um texugo.
À volta, gai’shain apressavam-se para desfazer o acampamento das Sábias e carregar as mulas. Em pouco tempo, apenas um Aiel ou alguém com capacidade similar de ler rastros seria capaz de dizer que um dia houvera tendas naquele pedaço de terra batida. A mesma atividade cobria as encostas das montanhas do entorno, e o burburinho também se estendia até a cidade. Nem todos partiriam, mas milhares se poriam em marcha. Aiel se aglomeravam nas ruas, e o comboio de carroções de Mestre Kadere se estendia ao redor da grande esplanada, lotados pelos objetos escolhidos por Moiraine. Os três carroções brancos de água, no final do comboio, pareciam enormes barris sobre rodas, puxados por parelhas de vinte mulas. O carroção do próprio Kadere, à frente da formação, era uma casinha branca sobre rodas, com degraus na parte traseira e uma chaminé metálica emergindo do telhado plano. O mercador corpulento de nariz aquilino, naquele dia todo vestido de seda cor de marfim, tirou da cabeça um destoante chapéu surrado quando ela passou por ele, os olhos escuros e enviesados sem um traço do largo sorriso que o homem lhe exibiu.
Ela o ignorou com frieza. Decididamente, os sonhos daquele homem vinham se mostrando sombrios e desagradáveis, isso quando também não eram obscenos. Alguém deveria enfiar a cabeça dele em um barril de chá de espigão-azul, pensou, emburrada.
Ao se aproximar do Teto das Donzelas, abriu caminho por gai’shain apressados e mulas que esperavam pacientemente. Para a surpresa de Egwene, uma das pessoas que carregava os pertences das Donzelas usava uma túnica preta, e não branca. Uma mulher, pelo tamanho, cambaleava sob o peso da trouxa amarrada com cordas que trazia nas costas. Ao conduzir Bruma na direção dela, Egwene curvou-se para espiar dentro do capuz e reconheceu o rosto cansado de Isendre, o suor já escorrendo pelas bochechas. Ficou contente pelas Donzelas terem parado de deixar — ou mandar — a mulher pôr os pés na rua praticamente nua, mas trajá-la de preto parecia uma crueldade desnecessária. Se àquela altura a mulher já estava suando em bicas, chegaria à beira da morte quando o calor do dia realmente estivesse a toda.
Ainda assim, assuntos das Far Dareis Mai não eram de sua conta. Aviendha lhe dissera isso gentilmente, mas com firmeza. Adelin e Enaila haviam sido quase rudes quanto à questão, e uma rija Donzela de cabelos brancos chamada Sulin chegara a ameaçar levá-la de volta às Sábias puxando-a pela orelha. Apesar de seus esforços para persuadir Aviendha a parar de chamá-la de “Aes Sedai”, Egwene se irritara ao descobrir que, após uma dúvida tênue em relação a ela, o restante das Donzelas acabara decidindo que não passava de mais uma pupila das Sábias. Agora não a deixavam nem passar da porta do Teto, a menos que afirmasse estar cumprindo alguma ordem.
A rapidez com que conduziu Bruma para atravessar a multidão não significava que aceitara a justiça das Far Dareis Mai, e também não foi pela consciência incômoda de que algumas das Donzelas a observavam, certamente prontas para lhe dar uma bronca caso achassem que pretendia interferir. Também tinha pouco a ver com sua antipatia por Isendre. Egwene não queria nem pensar nos vislumbres que tivera dos sonhos da mulher, pouco antes de Cowinde acordá-la. Haviam sido pesadelos de tortura, sofrimentos por que a mulher passava que fizeram Egwene fugir horrorizada, com algo mau e sombrio dando gargalhadas enquanto via a garota partir em disparada. Não surpreendia que Isendre parecesse exausta. Egwene despertara tão rápido que Cowinde saltara para trás logo após ter pousado a mão em seu ombro.
Rand estava na rua, em frente ao Teto das Donzelas, usando uma shoufa para se proteger do sol, além de um manto de seda azul com tantos bordados de ouro que parecia mais apropriado para um palácio, embora estivesse aberto até a altura do peito. Seu cinto tinha uma nova fivela, uma peça entalhada em formato de Dragão. Rand de fato estava começando a se achar muito importante, isso era claro. De pé ao lado de Jeade’en, seu garanhão malhado, ele conversava com os chefes de clã e com alguns comerciantes Aiel que ficariam em Rhuidean.