— Rand tem se afastado cada vez mais de mim, Lan, e preciso ficar por perto. Ele precisa de toda a orientação que eu puder dar, e, tirando compartilhar sua cama, farei de tudo para que receba essa orientação.
Os arcos haviam revelado que dormir com o rapaz seria um desastre. Não que ela sequer tivesse considerado a possibilidade — ficava chocada só de pensar! —, mas, nos arcos, era algo que iria ou poderia considerar no futuro. Tinha certeza de que a ideia era uma medida de seu crescente desespero, e vira nos arcos que fazê-lo arruinaria absolutamente tudo. Queria poder se lembrar de como — havia chaves para compreender Rand al’Thor em tudo o que pudesse aprender sobre ele —, mas apenas a ideia de calamidade permanecera em sua mente.
— Talvez você se torne mais humilde se Rand lhe mandar buscar os chinelos e acender o cachimbo dele.
Moiraine o encarou. Seria uma piada? Se sim, não tinha a menor graça. Nunca vira utilidade alguma em ser humilde. Siuan afirmava que ter sido criada no Palácio do Sol, em Cairhien, tornara Moiraine arrogante até o último fio de cabelo, em níveis tão profundos que a mulher sequer percebia — o que Moiraine negava com veemência. Mas, mesmo sendo filha de um pescador taireno, Siuan conseguia encarar qualquer rainha olho no olho, e, para ela, a arrogância de Moiraine era um obstáculo aos próprios planos.
Se Lan tentava fazer piadinhas, mesmo que ruins ou equivocadas, estava mudando. Já fazia quase vinte anos que o homem a acompanhava, e ele salvara sua vida mais vezes do que Moiraine se dera o trabalho de contar — em muitas delas colocando-se em grande risco. Ele sempre considerara a própria vida algo sem importância, cujo valor residia apenas no uso que Moiraine pudesse fazer dela. Alguns diziam que Lan cortejava a morte como um noivo corteja sua amada. A Aes Sedai nunca tivera o coração dele nas mãos e jamais sentira ciúmes das mulheres que pareciam se atirar aos pés de seu Guardião. O próprio Lan já afirmara sequer ter coração. Mas descobrira a existência do próprio coração ao longo do ano que se passara, e encontrara-o justamente quando uma mulher o amarrara em um barbante para usá-lo pendurado no pescoço.
Claro que ele a recusara. Não negava seu amor por Nynaeve al’Meara, outrora Sabedoria de Dois Rios, atual Aceita da Torre Branca, mas negava que pudesse tê-la. Lan dizia que só possuía duas coisas: uma espada inquebrável e uma guerra infinita. Nunca presentearia uma noiva com nenhuma das duas coisas. Daquilo, pelo menos, Moiraine cuidara, embora ele não fosse saber como até que já estivesse feito. Do contrário, Lan muito provavelmente tentaria mudar as coisas, teimoso como podia ser.
— Esta terra árida parece ter murchado sua própria humildade, al’Lan Mandragoran. Melhor eu encontrar um pouco de água para fazê-la voltar a crescer.
— Minha humildade é afiada feito uma lâmina — retrucou o homem, seco. — Você nunca deixa que fique muito cega.
Lan ensopou um cachecol branco com a água do cantil de couro e entregou o pano encharcado a ela. Moiraine o amarrou em volta das têmporas sem fazer comentários. O sol começava a se erguer acima das montanhas atrás deles, uma bola ardente de ouro derretido.
A multidão serpenteava pelo lado estéril de Chaendaer, o fim da cauda ainda em Rhuidean enquanto a cabeça já encimava a encosta e descia até planícies acidentadas, cravejadas de formações rochosas e platôs, alguns listrados de vermelho e ocre em meio aos marrons e cinzas. O céu estava tão claro que Moiraine enxergava a milhas de distância, mesmo quando a comitiva já estava descendo de Chaendaer. Grandes arcos naturais erguiam-se ao longo da paisagem, e, em todas as direções, montanhas recortadas arranhavam o céu. Vales e barrancos secos dividiam uma terra esparsamente pontilhada por arbustos baixos e vegetais sem folhas, ambos cheios de espinhos. As raras árvores, retorcidas e esmirradas, também eram espinhosas. O sol transformava o local em um forno. Uma terra dura que moldara um povo duro. Mas Lan não era o único que estava mudando, ou sendo mudado. Moiraine queria saber o que Rand faria dos Aiel, no fim das contas. Havia uma longa jornada à frente para todos.
8
Além da fronteira
Segurando-se em seu canto, na parte traseira do carroção que não parava de sacudir, Nynaeve mantinha o equilíbrio com uma das mãos, e com a outra segurava o chapéu de palha, enquanto espiava a furiosa tempestade de areia se assentar aos poucos atrás deles, à distância. No calor da manhã, a aba larga sombreava seu rosto, mas a brisa gerada pela velocidade cambaleante do carroção era suficiente para fazer o chapéu sair voando de sua cabeça, apesar do cachecol vermelho-escuro amarrado sob o queixo. Colinas gramadas e matagais esparsos ficavam para trás, a grama seca e frágil devido ao calor de fim de verão. A poeira levantada pelas rodas do carroção lhe obscurecia um pouco a visão, além de fazê-la tossir. As nuvens brancas no céu mentiam. Não caíra uma gota de chuva desde antes de partirem de Tanchico, semanas atrás, e fazia tempo que aquela estrada, antigamente de tráfego pesado, recebia um carroção.
Ninguém surgiu cavalgando em meio ao que parecia uma sólida parede marrom, o que era ótimo. Já não sentia raiva dos salteadores que haviam tentado pará-los quando estavam perto de escapar da loucura de Tarabon. E, a menos que estivesse zangada, Nynaeve não conseguia sentir a Fonte Verdadeira, muito menos canalizar. Mesmo com raiva, ficara surpresa de ter criado tamanha tempestade. Uma vez despertada, sua fúria passava a ter vida própria. Elayne também se surpreendera com o tamanho, embora, por sorte, não tivesse demonstrado isso para Thom ou Juilin. Porém, mesmo que sua força estivesse aumentando — as professoras na Torre tinham dito que aumentaria, e certamente nenhuma delas era forte o bastante para sobrepujar um dos Abandonados, como Nynaeve fizera —, ainda tinha aquela limitação. Caso um dos bandidos aparecesse, Elayne teria de dar conta deles sozinha, o que Nynaeve não queria que acontecesse. Sua raiva anterior sumira, mas sentia bons sinais de que logo haveria uma nova safra.
Escalando um pouco sem jeito a tela que prendia o carregamento de barris, Nynaeve alcançou um dos de água, amarrados às laterais do carroção, junto aos baús com todos os pertences e suprimentos. Imediatamente, seu chapéu foi parar na nuca, preso apenas pelo cachecol. A menos que soltasse a corda que segurava com a outra mão, os dedos só alcançavam a tampa do barril, e, do jeito que o veículo balançava, provavelmente cairia de cara no chão se soltasse.
Juilin Sandar guiava o esbelto castrado marrom que ia cavalgando bem perto do carroção — batizara o animal com o improvável nome de Sorrateiro —, e se esticou para entregar a ela um dos cantis de couro pendurados na sela. Nynaeve bebeu com gratidão, mas sem graciosidade. Segurando-se como podia, feito um cacho de uvas em um vinhedo assolado pelo vento, derramou quase tanta água no vestido cinza quanto fez descer pela garganta.
Era um vestido adequado para uma mercadora: de gola alta, bem-tecido e bem-cortado, mas, ainda assim, simples. O broche no peito, um pequeno círculo com granadas douradas, talvez fosse um pouco demais para uma simples mercadora, mas fora presente da Panarca de Tarabon, junto com outras joias bem mais valiosas, todas escondidas em um compartimento debaixo do assento do condutor. Nynaeve usava o broche para se lembrar de que até mulheres que se sentavam em tronos às vezes precisavam ser pegas pelo colarinho e sacudidas. Agora que lidara com Amathera, nutria um pouco mais de simpatia pelas manipulações de reis e rainhas que a Torre protagonizava.
Suspeitava que a Panarca lhe dera presentes como suborno para fazê-los deixar Tanchico. A mulher estivera disposta a comprar até um navio para que eles não ficassem nenhuma hora a mais do que o necessário, mas ninguém se dispusera a vender um. As poucas embarcações restantes no Porto de Tanchico apropriadas a navegar para além do litoral tinham sido abarrotadas de refugiados. Além disso, um navio era a maneira óbvia, a mais rápida, de partir, e depois do ocorrido a Ajah Negra poderia estar de olho nela e em Elayne. As duas haviam sido enviadas para caçar Aes Sedai da Ajah Negra, não para ser emboscadas por elas. Por isso o carroção e a longa viagem por uma terra destroçada pela guerra civil e pela anarquia. Nynaeve estava começando a desejar não ter insistido em evitar os navios. Não que algum dia fosse admitir isso para os outros.