— Não sei, Elayne.
— Ela estava falando a verdade. — Juilin girou uma das cadeiras ao contrário e se sentou de pernas abertas, o bastão apoiado no encosto. — Já interroguei bandidos e assassinos suficientes para saber quando estou ouvindo a verdade. Parte do tempo, ela estava apavorada demais para mentir, e, no restante, com raiva demais.
— Vocês dois… — Nynaeve respirou fundo, jogou a bolsinha na mesa e cruzou os braços como se quisesse prender as mãos bem longe da trança. — Receio que Juilin esteja certo, Elayne.
— Mas a Amyrlin sabe o que estamos fazendo. Para começo de conversa, foi ela quem nos mandou deixar a Torre.
Nynaeve bufou audivelmente.
— Acredito em qualquer coisa vinda de Siuan Sanche. Queria passar uma hora com ela em um lugar onde não desse para canalizar. Aí veríamos se ela é mesmo durona.
Elayne não achava que aquilo fosse fazer diferença. Recordando-se daqueles imponentes olhos azuis, suspeitou que Nynaeve acabaria ganhando uma bela cota de machucados, na hipótese remota de que seu desejo fosse atendido.
— E o que vamos fazer a respeito? As Ajahs têm espiãs por toda parte, ao que parece. Até a própria Amyrlin. Poderíamos nos deparar com mulheres tentando enfiar coisas na nossa comida por todo o caminho até Tar Valon.
— Não se nosso visual não for o que elas esperam. — Nynaeve tirou um jarro amarelo da prateleira e o colocou na mesa ao lado do bule de chá. — Isto aqui é pimenta-de-galinha branca. Serve para aliviar dor de dente, mas também para deixar o cabelo negro feito a noite.
Elayne tocou seus fios dourado-avermelhados. O cabelo dela, não o de Nynaeve, podia apostar! Mas, por mais que odiasse a ideia, admitia que era boa.
— Um toque de agulha e linha na parte da frente de alguns destes vestidos e já não somos mais mercadoras, e sim duas damas viajando com seus serviçais.
— Viajando em um carroção carregado de tinturas? — indagou Juilin.
O olhar entediado de Nynaeve indicou que a gratidão por ter sido salva já estava esgotada.
— Tem uma carruagem no pátio de um estábulo, no outro lado da ponte. Acho que o proprietário aceitaria vender. Voltem para o carroção antes que alguém o roube. Não sei o que vocês têm na cabeça para deixar tudo à mercê de quem estiver passando! Se as coisas ainda estiverem no lugar, vocês podem pegar uma das bolsas…
Algumas pessoas olharam com espanto quando a carruagem de Noy Torvald, puxada por quatro animais, estacionou na frente da loja de Ronde Macura, com baús amarrados ao teto e um cavalo encilhado preso à parte traseira. Noy perdera tudo o que tinha quando o comércio com Tarabon entrou em colapso. Passara a se virar fazendo bicos estranhos para a viúva Teran. Ninguém na cidade jamais vira aquele cocheiro antes, um camarada alto e enrugado, com um bigode comprido e olhos frios e imperiosos, nem o lacaio negro e sério que trajava um chapéu taraboniano e que saltou com agilidade do veículo para abrir a porta. Os olhares de espanto se transformaram em murmúrios quando duas mulheres saíram da loja com pacotes nos braços. Uma delas usava um vestido de seda verde, e a outra, um de lã azul, mas ambas tinham um cachecol enrolado na cabeça, de forma a revelar não mais que um pouquinho dos cabelos. As duas praticamente saltaram para dentro da carruagem.
Dois dos Filhos da Luz começaram a se aproximar de forma despretensiosa para descobrir quem eram aqueles estranhos, mas, enquanto o lacaio ainda fazia a escalada até o assento do condutor, o cocheiro estalou o longo chicote e gritou para que abrissem caminho para alguma lady cujo nome se perdeu quando os próprios Filhos se lançaram para fora do caminho, tropeçando na rua poeirenta, e a carruagem galopou em direção à Estrada Amador.
Os curiosos se dispersaram, fofocando entre si. Uma lady misteriosa, obviamente, acompanhada de sua criada, fazendo compras com Ronde Macura e partindo a toda, deixando os Filhos para trás. Pouca coisa acontecia em Mardecin naqueles tempos, e aquilo seria pauta para dias e dias de conversas. Os Filhos da Luz espanaram a poeira com raiva, mas por fim decidiram que reportar o incidente os faria passar por tolos. Além disso, o Capitão não gostava de nobres e provavelmente os mandaria ir atrás da carruagem, uma longa cavalgada no calor por conta de uma jovem arrogante de uma Casa qualquer. Se nenhuma acusação pudesse ser feita, algo sempre complicado em se tratando da nobreza, não seria o Capitão quem levaria a culpa. Na esperança de que as notícias sobre aquela humilhação não se espalhassem, os homens certamente jamais consideraram a possibilidade de interrogar Ronde Macura.
Pouco tempo depois, Therin Lugay conduziu sua carroça até o quintal atrás da loja, as provisões para a longa jornada à frente já embaladas sob a cobertura arredondada de tela. Era verdade que Ronde Macura o Curara de uma febre que matara vinte e três pessoas no inverno anterior, mas eram sua esposa chata e a sogra megera que o deixavam contente pela longa jornada até onde viviam as bruxas. Ronde dissera que alguém deveria ir encontrá-lo, só não dissera quem, mas ele esperava ir até Tar Valon.
Bateu seis vezes à porta da cozinha antes de entrar, mas foi só quando subiu a escada que encontrou alguém. No quarto dos fundos, Ronde e Luci estavam estiradas nas camas, completamente vestidas, mas com roupas amarrotadas, dormindo um sono profundo enquanto o sol ainda estava no céu. Nenhuma das duas despertou quando Therin as sacudiu. Ele não compreendeu a situação, nem por que um dos lençóis estava largado no chão, todo cortado em tiras, ou por que havia dois bules de chá vazios no quarto, mas apenas uma xícara, ou por que um funil repousava no travesseiro de Ronde. Mas o homem sempre soubera que o mundo era repleto de coisas que não compreendia. No caminho de volta para a carroça, pensou nas provisões que o dinheiro de Ronde comprara, pensou em sua mulher e na mãe dela, e, quando partiu com os cavalos, sua intenção era ir conhecer Altara, ou talvez Murandy.
Bastante tempo se passou até que uma Ronde Macura desgrenhada conseguisse cambalear até a casa de Avi Shendar para enviar um pombo com um fino tubinho amarrado à pata. O pássaro se lançou rumo ao nordeste, reto feito uma flecha, em direção a Tar Valon. Após refletir por um momento, Ronde preparou outra cópia em outro pedaço do fino pergaminho e amarrou-a a uma ave de outra gaiola. Esta partiu para o oeste, já que havia prometido enviar segundas vias de todas as mensagens. Naqueles tempos difíceis, uma mulher tinha que se virar da melhor forma possível, e não havia nenhum mal naquilo, não no tipo de relato que fazia para Narenwin. Ainda se perguntando se algum dia conseguiria tirar o gosto de raiz-dupla da boca, refletiu que não se importaria caso a mensagem causasse algum prejuízo àquela tal de Nynaeve.
Capinando seu jardim como habitualmente fazia, Avi não prestou atenção nos atos de Ronde. E, como sempre, lavou as mãos e entrou assim que a mulher partiu. Ela colocara um maço de folhas sob o pergaminho para amortecer a ponta da caneta. Ao erguê-lo contra a luz vespertina, ele conseguiu decifrar o que a mulher escrevera. Logo um terceiro pombo batia as asas, partindo em uma terceira direção.
11
O engate de nove cavalos
Um largo chapéu de palha protegia o rosto de Siuan do sol de fim de tarde enquanto ela permitia que Logain abrisse caminho pelo Portão Shilene de Lugard. As muralhas externas da cidade, altas e cinzentas, estavam precisando de reparos. Em dois pontos que conseguia divisar, desabamentos haviam reduzido a muralha a não mais que uma cerca alta. Min e Leane cavalgavam logo atrás, ambas cansadas do ritmo que o homem havia imposto nas últimas semanas, desde Fontes de Kore. Ele queria estar no comando, e não fora preciso muito para convencê-lo de que estava. Se Logain dizia a hora em que partiriam pela manhã, quando e onde parariam à noite, se guardava o dinheiro, e até se esperava que as mulheres não só servissem suas refeições, como as preparassem, para ela pouco importava. Na verdade, sentia pena do homem. Logain não tinha ideia do que Siuan planejava para ele. Um peixe grande no anzol para pegar um maior ainda, pensava ela, sombriamente.