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No papel, Lugard era a capital de Murandy, o trono do Rei Roedran, mas os lordes murandianos juravam lealdade e depois se recusavam a pagar os impostos ou a fazer qualquer outra coisa que Roedran quisesse, e o povo agia da mesma forma. Murandy era uma nação só no papel, um povo que se mantinha unido por pouco: por uma suposta fidelidade ao rei ou à rainha — o trono mudava de mãos com bastante regularidade — e pelo medo de que Andor ou Illian pudessem reclamá-los, caso não mantivessem algum tipo de laço.

Muralhas de pedra entrecortavam a cidade, a maior parte em estado pior do que os bastiões exteriores, uma vez que Lugard crescera de modo desordenado ao longo dos séculos e fora dividida mais de uma vez entre nobres em conflito. Era uma cidade suja, com muitas das ruas largas sem pavimento e todas com bastante poeira. Homens de chapéus de copa alta e mulheres com aventais e saias que revelavam o tornozelo esquivavam-se entre os pesados comboios dos mercadores, enquanto crianças brincavam nos sulcos abertos pelos carroções. Era o comércio que mantinha Lugard viva: o povo fazia negócios com Illian e Ebou Dar, e o comércio se estendia de Ghealdan, a oeste, até Andor, ao norte. Grandes terrenos vazios ao longo da cidade abrigavam carroções estacionados lado a lado, muitos bastante carregados e protegidos por telas, outros vazios, aguardando fretes. Nas ruas principais havia estalagens a se perder de vista, assim como estábulos e áreas para cavalos, que, somados, superavam o número de lojas e casas de pedra cinzas, todas cobertas com telhas azuis, vermelhas, púrpuras ou verdes. A poeira e o barulho tomavam conta do ar, com o tinido dos ferreiros, o ruído dos carroções e os impropérios de seus condutores, as gargalhadas escandalosas que saíam das estalagens. O sol assava Lugard à medida que deslizava para o horizonte, e o ar despertava uma sensação de que talvez nunca mais fosse voltar a chover.

Quando Logain finalmente entrou em um estábulo e apeou atrás de uma estalagem de telhado verde chamada O Engate de Nove Cavalos, Siuan desceu de Bela e deu um tapinha hesitante no focinho da égua desgrenhada, com medo dos dentes. Em sua opinião, sentar no dorso de um animal não era forma de se viajar. Embarcações seguiam conforme o manejo do leme, mas um cavalo poderia decidir agir por conta própria. E barcos nunca mordiam. Bela ainda não tinha feito isso, mas poderia. Ao menos aqueles terríveis primeiros dias de rigidez já haviam passado, quando teve certeza de que Leane e Min estavam rindo pelas suas costas enquanto ela mancava pelo acampamento, à noite. Após um dia inteiro na sela, Siuan ainda sentia como se tivesse sido espancada violentamente, mas conseguia disfarçar.

Assim que Logain começou a barganhar com o dono do estábulo, um velhote magrelo e sardento trajando um colete de couro, mas sem camisa, Siuan se aproximou de Leane.

— Se quer praticar seus truques — disse ela calmamente —, pratique com Dalyn nesta próxima hora.

Leane lhe lançou um olhar dúbio — ensaiara sorrisos e olhadelas em algumas das aldeias desde Fontes de Kore, mas Logain não recebera mais que olhares entediados —, depois suspirou e assentiu. Respirando fundo, a mulher avançou daquele incrível jeito sinuoso, já sorrindo para Logain enquanto conduzia sua égua cinza de pescoço arqueado. Siuan não entendia como Leane fazia aquilo. Era como se alguns dos ossos dela deixassem de ser rígidos.

Movendo-se na direção de Min, Siuan falou com a mesma calma:

— Assim que Dalyn tiver terminado com o dono do estábulo, diga a ele que você vai me encontrar lá dentro. Então vá rápido na frente e fique longe dele e de Amaena até eu voltar. — Pelo barulho que ecoava da estalagem, a multidão lá dentro era grande o bastante para esconder um exército. Com certeza era grande o bastante para disfarçar a ausência de uma mulher. Min tinha aquela expressão de mula empacada nos olhos e abriu a boca, sem dúvida para perguntar por quê. Siuan se antecipou.

— Obedeça, Serenla. Ou vai passar a limpar as botas dele, além de entregar o prato de comida. — O olhar teimoso permaneceu, mas Min, emburrada, anuiu.

Siuan passou as rédeas de Bela para a mão da outra mulher, saiu correndo do estábulo e começou a descer a rua no que esperava que fosse a direção certa. Não queria ter de procurar na cidade inteira, não naquele calor e naquela poeira.

Pesados carroções puxados por parelhas com seis, oito ou até dez animais preenchiam as ruas, os condutores estalando longos chicotes e xingando tanto os cavalos quanto os transeuntes que zanzavam em meio aos vagões. Homens em trajes grosseiros e casacos de condutores de carroção se misturavam à multidão, por vezes lançando convites engraçadinhos para as mulheres por quem passavam. As mulheres, usando aventais coloridos, alguns listrados, e com a cabeça enrolada em lenços claros, caminhavam com os olhos fixos à frente, como se nada escutassem. As sem avental, com os cabelos soltos na altura dos ombros e saias que terminavam a um pé ou mais do chão, com frequência gritavam respostas ainda mais grosseiras.

Siuan levou um susto ao perceber que alguns dos homens estavam fazendo propostas a ela. Isso não a deixou com raiva — era difícil pensar que realmente fosse o alvo daquelas palavras —, apenas surpresa. Ainda não estava acostumada às transformações por que passara. Aqueles homens podiam achá-la atraente… Seu reflexo na janela imunda da loja de um alfaiate chamou sua atenção. Não era muito mais do que a imagem turva de uma garota de pele clara usando chapéu de palha. Ela era jovem. Não só parecia jovem, pelo que podia notar, mas realmente era. Pouco mais velha que Min. Do ponto de vista dos anos que de fato tinha vivido, considerava ter a aparência de uma garota.

Uma vantagem de ter sido estancada, disse para si mesma. Conhecera mulheres que pagariam qualquer quantia para rejuvenecer quinze ou vinte anos. Algumas talvez considerassem o preço que Siuan pagara uma barganha justa. Não era raro que se pegasse listando essas vantagens, talvez tentando se convencer de que existiam. Libertada dos Três Juramentos, ao menos podia mentir quanto fosse preciso. E nem o próprio pai a teria reconhecido. Ela não tinha a mesma aparência de quando era jovem. As mudanças que a maturidade promovera ainda estavam lá, mas suavizadas em forma de juventude. Sendo friamente objetiva, Siuan achava que estava mais bonita agora do que quando garota. E “bonita” era o melhor elogio que já recebera. O mais habitual fora “simpática”. Não conseguia pensar naquele rosto como seu, como Siuan Sanche. Só era a mesma por dentro. A mente ainda guardava todo o seu conhecimento. Ali, no pensamento, ainda era a mesma pessoa.

Algumas das estalagens e tavernas de Lugard tinham nomes como O Martelo do Ferrador, ou O Urso Dançante, ou O Porco Prateado, geralmente combinando com espalhafatosas placas pintadas. Outras ostentavam nomes que não deveriam ser permitidos, o mais comportado deles sendo O Beijo da Domanesa, com a pintura de uma mulher de pele cor de cobre — nua até a cintura! — fazendo beicinho. Siuan se perguntou o que Leane acharia daquilo, mas, do jeito que a antiga Curadora vinha se comportando, talvez servisse apenas para lhe dar certas ideias.

Por fim, em uma rua transversal tão larga quanto a principal, pouco além de uma abertura sem portão em uma das muralhas internas que estava prestes a desabar, ela encontrou a estalagem que procurava, uma casa de três andares de pedra cinza rugosa encimados por telhas roxas. A placa acima da porta exibia uma mulher exageradamente voluptuosa coberta o mínimo possível pelos próprios cabelos, montando um cavalo em pelo. O nome, Siuan fez questão de esquecer assim que leu.

Dentro, o salão estava azulado de tanta fumaça de cachimbo, repleto de homens barulhentos que bebiam e gargalhavam enquanto tentavam beliscar as atendentes que os serviam e que, com sorrisos pacientes, se esquivavam como podiam. Quase imperceptíveis em meio ao burburinho, uma cítara e uma flauta acompanhavam uma jovem que cantava e dançava em cima de uma mesa, na extremidade do cômodo comprido. De vez em quando, a cantora rodopiava as saias tão alto que revelava quase completamente as pernas. O que Siuan entendeu da canção lhe deu vontade de lavar a boca da garota. Por que uma mulher sairia por aí sem roupa? Por que uma mulher cantaria a respeito daquilo para um bando de brutamontes bêbados? Era o tipo de lugar que nunca frequentara. Sua intenção era que a visita fosse o mais breve possível.