Nynaeve rangeu os dentes. As palavras seriam fáceis de falar. Não ficaria presa a elas, não estava unida aos Três Juramentos. Mas seria uma admissão de que Melaine estava certa. Ela não acreditava naquilo e não diria coisa alguma.
— Ela não vai prometer, Melaine — afirmou Egwene, por fim. — Quando fica com esse olhar de mula, é porque não sairia de casa nem que você mostrasse o telhado pegando fogo.
Nynaeve reservou uma ponta daquele olhar a Egwene. Mula, então! Quando tudo o que fez foi se recusar a ser jogada para lá e para cá feito uma boneca de pano.
Após um longo momento, Melaine suspirou.
— Muito bem. Mas seria bom lembrar, Aes Sedai, que você não passa de uma criança em Tel’aran’rhiod. Vamos, Egwene. Temos que ir. — Um sorrisinho surgiu no rosto de Egwene enquanto as duas desapareciam.
De repente, Nynaeve se deu conta de que suas roupas haviam mudado. Haviam sido mudadas. As Sábias conheciam Tel’aran’rhiod o suficiente para alterar coisas nos outros tanto quanto nelas próprias. Nynaeve agora trajava uma blusa branca e uma saia escura, mas, ao contrário das saias das mulheres que tinham acabado de ir embora, a dela terminava bem acima do joelho. Os sapatos e as meias haviam sumido, e seu cabelo estava repartido em duas tranças, uma acima de cada orelha, amarradas com fitas amarelas. Uma boneca de pano com o rosto entalhado e pintado estava sentada ao lado de seus pés descalços. Nynaeve escutou os próprios dentes rangendo. Aquilo já acontecera uma vez antes, e ela conseguira arrancar de Egwene que aquela era a maneira como os Aiel vestiam as garotinhas.
Em um rompante de fúria, voltou a trajar a seda taraboniana amarela, desta vez ainda mais colada ao corpo, e deu um chute na boneca, que saiu voando, desaparecendo ainda no ar. Aquela tal de Melaine provavelmente estava de olho em Lan. Todos os Aiel pareciam pensar que ele era uma espécie de herói. A gola alta se transformou em um colarinho de renda, e o decote estreito e cavado deixava parte dos seios à mostra. Se aquela mulher sequer sorrisse para ele…! Se ele…! De repente, se deu conta de que o decote se aprofundava e se alargava rapidamente e apressou-se em ajustá-lo; não todo, mas o suficiente para não constrangê-la. O vestido tinha ficado tão apertado que mal conseguia se mexer. Também deu um jeito nisso.
Então ela precisava pedir permissão? Implorar para as Sábias antes de fazer qualquer coisa? Não fora ela quem derrotara Moghedien? Na ocasião, todas haviam ficado justificadamente impressionadas, mas pareciam ter esquecido.
Se não podia usar Birgitte para descobrir o que estava havendo na Torre, talvez houvesse um jeito de fazer isso sozinha.
15
O que se pode aprender nos sonhos
Cuidadosamente, Nynaeve formou em sua mente uma imagem do gabinete da Amyrlin, da mesma forma como visualizara o Coração da Pedra ao ir dormir. Nada aconteceu, e ela franziu a testa. Deveria ter sido levada à Torre Branca, ao aposento que havia visualizado. Tentou de novo, imaginando outro aposento do local, mas um que visitara com muito mais frequência, ainda que em momentos menos alegres.
O Coração da Pedra se transformou no gabinete da Mestra das Noviças, um aposento compacto, com painéis escuros e mobília simples e robusta que tinha sido usada por várias gerações de mulheres que se apropriaram daquele escritório. Quando as transgressões de uma noviça eram tamanhas que algumas horas a mais esfregando o chão ou capinando trilhas não eram suficientes, era para lá que a mandavam. Para que uma Aceita recebesse um chamado do tipo, era necessária uma transgressão ainda maior, mas ainda assim ela ia, arrastando os pés e sabendo que a consequência seria tão dolorosa quanto, talvez ainda pior.
Nynaeve não queria nem olhar para o aposento — em suas numerosas visitas, Sheriam a chamara de “intencionalmente teimosa” —, mas se pegou encarando o espelho na parede, no qual noviças e Aceitas tinham que ficar olhando os próprios rostos chorosos enquanto ouviam o sermão de Sheriam sobre obedecer regras, mostrar o devido respeito ou o que fosse. Obedecer às regras dos outros e mostrar o respeito exigido sempre havia sido um estorvo para Nynaeve. Os débeis vestígios dourados na moldura entalhada indicavam que o objeto estivera ali desde a Guerra dos Cem Anos, se não desde a Ruptura.
O vestido taraboniano era bonito, mas qualquer pessoa que a visse naqueles trajes ficaria desconfiada. Até as domanesas se vestiam de modo circunspecto quando visitavam a Torre, e Nynaeve não conseguia imaginar que alguém pudesse sonhar em estar ali sem se comportar da melhor forma possível. Não que fosse provável que encontrasse alguém, exceto, talvez, uma pessoa que adentrasse Tel’aran’rhiod por alguns momentos durante um sonho. Antes de Egwene, não houvera nenhuma mulher na Torre capaz de entrar no Mundo dos Sonhos sem ajuda desde Corianin Nedeal, mais de quatrocentos anos antes. Por outro lado, entre os ter’angreal roubados da Torre que ainda estavam nas mãos de Liandrin e seus confederados, onze tinham sido estudados pela última vez pela própria Corianin. Os outros dois que a mulher estudara, os dois que Nynaeve e Elayne tinham em mãos, davam acesso a Tel’aran’rhiod. Era melhor presumir que os demais também davam. Havia pouca chance de que Liandrin ou qualquer uma das outras fossem sonhar que estavam de volta à Torre da qual tinham fugido, mas mesmo essa pequena chance era um risco grande demais, já que podia significar ser apanhada em uma cilada. Na verdade, Nynaeve não tinha como ter certeza de que os únicos ter’angreal roubados eram aqueles que Corianin estudara. Os registros sobre ter’angreal que ninguém compreendia costumavam ser obscuros, e outros poderiam muito bem estar nas mãos de irmãs Negras que ainda estavam na Torre.
O vestido mudou por completo, virou uma lã branca e macia, mas não de qualidade particularmente alta, com uma faixa de sete listras coloridas na bainha, uma para cada Ajah. Se visse alguém que não desaparecesse após alguns instantes, Nynaeve se transportaria de volta para Sienda, e a pessoa pensaria que ela era apenas uma das Aceitas tocando Tel’aran’rhiod em seus sonhos. Não. Não voltaria para a estalagem, e sim para o gabinete de Sheriam. Afinal de contas, qualquer pessoa assim teria de ser da Ajah Negra, e Nynaeve teria que caçá-la.
Para completar o disfarce, segurou a trança, subitamente loura-avermelhada, e fez uma careta para o rosto de Melaine no espelho. Aquela, sim, era uma mulher que ela gostaria de entregar para Sheriam.
O gabinete da Mestra das Noviças ficava perto dos alojamentos das noviças, e os largos corredores ladrilhados tremeluziam com movimentos ocasionais, para além das lamparinas apagadas e das tapeçarias de parede. Eram relances de garotas apavoradas, todas trajando o branco das noviças. Grande parte dos pesadelos daquelas garotas era com Sheriam. Nynaeve as ignorou enquanto passava apressadamente. Elas não estavam presentes o suficiente no Mundo dos Sonhos para vê-la, ou, se a vissem, pensariam apenas que ela fazia parte do sonho.
O gabinete da Amyrlin ficava a apenas uma rápida subida por uma larga escadaria. Ao se aproximar, Elaida surgiu de repente à sua frente, de rosto suado e usando um vestido vermelho-sangue, a estola do Trono de Amyrlin em torno dos ombros. Ou quase a estola da Amyrlin, já que não tinha a listra azul.
Aqueles olhos escuros inflexíveis se concentraram em Nynaeve.
— Eu sou o Trono de Amyrlin, garota! Você não sabe demonstrar respeito? Vou fazer vo… — No meio da palavra, ela desapareceu.
Nynaeve soltou o ar, abalada. Elaida, Amyrlin. Aquilo com certeza era um pesadelo. Provavelmente o maior sonho dela, pensou, sarcástica. Mais fácil nevar em Tear do que ela chegar tão alto.