— Foi o que eu quis dizer — disse Nynaeve pacientemente. Não tinha soado irritada e nem aparentava mau humor. Era ridículo. — A mulher que mobiliou este aposento não enxerga o mundo da mesma maneira que a mulher que escolheu o que costumava haver aqui. Olhe para estas pinturas. Não sei o que é aquela peça tripla, mas você é capaz de reconhecer a outra tão bem quanto eu. — Ambas haviam visto aquilo acontecer.
— Eu imagino que seja Bonwhin — falou Egwene, prestativa. — Você nunca prestou atenção às palestras como deveria. Isto é um tríptico.
— Seja o que for, a outra é que é importante. — Ouvira muito bem as Amarelas. As demais, na maioria das vezes, falavam um monte de bobagens inúteis. — Me parece que a mulher que a pendurou quer ser lembrada de como Rand é perigoso. Se Siuan Sanche, por algum motivo, tiver se voltado contra ele… Egwene, isso poderia ser bem pior do que ela só querer Elayne de volta na Torre.
— Talvez — ponderou Egwene. — Pode ser que os papéis revelem algo. Procure aqui. Quando eu terminar na escrivaninha de Leane, ajudo você.
Indignada, Nynaeve ficou olhando para as costas de Egwene enquanto a mulher saía. Procure você aqui, ora! Egwene não tinha o direito de lhe dar ordens. Deveria ir imediatamente atrás dela para deixar isso bem claro. Então por que você está aqui parada feito uma pateta?, questionou-se, com raiva. Examinar os papéis era uma boa ideia, e ela poderia fazer isso tanto ali dentro quanto lá fora. Na verdade, era mais provável que houvesse algo importante na escrivaninha da Amyrlin. Resmungando sozinha a respeito do que faria para enquadrar Egwene, caminhou até a mesa ricamente entalhada, chutando as saias a cada passo.
Não havia nada na mesa além de três caixas laqueadas com adornos, arrumadas com dolorosa precisão. Tendo em mente as armadilhas que podiam ser armadas por alguém que quisesse garantir a própria privacidade, ela conjurou uma vara comprida para empurrar e abrir as dobradiças da tampa da primeira, um objeto dourado e verde decorado com garças. Era um estojo com material para escrever, cheio de canetas, tinta e areia. A caixa maior, com rosas vermelhas se enroscando em rolos dourados, abrigava vinte ou mais delicados entalhes de marfim e turquesa, animais e pessoas, todos dispostos em veludo cinza-claro.
Quando abriu a tampa da terceira caixa — falcões dourados lutando em meio a nuvens brancas em um céu azul —, percebeu que as duas primeiras tinham se fechado novamente. Esse tipo de coisa acontecia ali. Tudo parecia querer permanecer como era no mundo desperto, e, para completar, se desviasse os olhos de alguma coisa, por um momento que fosse, poderia ver detalhes diferentes quando tornasse a olhar.
A terceira caixa continha documentos. A vara desapareceu, e ela levantou com cautela a folha de pergaminho que estava por cima. Formalmente assinada “Joline Aes Sedai”, tratava-se de uma humilde solicitação para que se cumprisse uma série de penitências que fizeram Nynaeve se retrair só de passar os olhos por elas. Não havia nada ali que importasse, a não ser para Joline. Um rabisco com letras angulosas na parte inferior dizia “aprovado”. Quando a garota se esticou para recolocar o pergaminho no lugar, ele desapareceu. A caixa também se fechou.
Com um suspiro, tornou a abri-la. Os papéis lá dentro pareciam diferentes. Segurando a tampa, ela os ergueu um a um, lendo tudo rapidamente. Ou tentando ler. Às vezes, as letras e relatos desapareciam enquanto ainda os erguia diante dos olhos. Outras, quando a leitura ainda não havia passado de meia página. Se traziam alguma saudação, era simplesmente “Mãe, com respeito”. Uns eram assinados por Aes Sedai, outros por mulheres com outros títulos, nobres ou não. Nenhum deles parecia tratar do assunto em questão. O Marechal-General de Saldaea e seu exército não foram encontrados, e a Rainha Tenobia estava se recusando a cooperar. Ela até conseguiu concluir esse relatório em especial, mas o documento presumia que o leitor soubesse por que o homem não estava em Saldaea e com o quê a rainha deveria estar cooperando. Não havia chegado qualquer relato de nenhum dos espiões das Ajahs em Tanchico havia três semanas, mas ela não conseguiu ir além dessa descoberta. Alguns problemas vinham se abatendo entre Illian, de um lado, e Murandy, do outro, e Pedron Niall estava assumindo o crédito. Mesmo nas poucas linhas que tinha em mãos, Nynaeve era capaz de sentir o ranger de dentes do autor. As cartas eram, sem dúvida, muito importantes, tanto as que conseguira ler apressadamente quanto as que sumiram sob seus olhos, mas sem qualquer serventia para ela. Havia começado a examinar o que parecia um relatório sobre uma reunião suspeita — a palavra usada era esta — de irmãs Azuis, quando um grito sofrido de “Ai, Luz, não!” veio do outro aposento.
Correndo em direção à porta, Nynaeve fez aparecer em suas mãos um pesado porrete de madeira, a cabeça encrespada de espinhos. Porém, quando entrou apressada, esperando encontrar Egwene no meio de uma batalha, viu apenas a mulher por trás da mesa da Curadora, encarando o nada. Com uma expressão de horror no rosto, certamente, mas ainda sem nenhum perigo ou ameaça que Nynaeve conseguisse divisar.
Egwene se assustou ao vê-la, então se recompôs visivelmente.
— Nynaeve, Elaida é o Trono de Amyrlin.
— Não seja idiota — debochou a mais velha. No entanto, a outra sala estava tão diferente de Siuan Sanche… — Você está imaginando coisas. Só pode ser.
— Eu estava com um pergaminho nas mãos, Nynaeve, assinado “Elaida do Avriny a’Roihan, Vigia dos Selos, Chama de Tar Valon, O Trono de Amyrlin” e selado com o selo da Amyrlin.
O estômago de Nynaeve se revirou até subir ao peito.
— Mas como? O que aconteceu com Siuan? Egwene, a Torre não depõe uma Amyrlin, exceto por algo bem sério. Foram só duas em quase três mil anos.
— Talvez Rand fosse um motivo sério o bastante. — A voz de Egwene permanecia inabalável, embora os olhos ainda estivessem bastante arregalados. — Talvez ela tenha adoecido de algo que as Amarelas não conseguiram Curar, ou caiu das escadas e quebrou o pescoço. O que importa é que Elaida é a Amyrlin. Acho que ela não vai apoiar Rand como Siuan apoiava.
— Moiraine — murmurou Nynaeve. — Ela estava tão certa de que Siuan conduziria a Torre a segui-lo. — Não conseguia imaginar que Siuan Sanche estivesse morta. Odiara a mulher muitas vezes, sentira algum medo dela de vez em quando, e podia admitir isso àquela altura, ao menos para si mesma, mas também a respeitara. Pensara que Siuan duraria para sempre. — Elaida. Luz! Ela é má feito uma cobra e cruel feito um gato. Não há como prever o que ela é capaz de fazer.
— Temo que eu tenha uma pista. — Egwene pressionou as mãos contra a barriga, como se acalmasse o próprio estômago revolto. — Era um documento bem curto. Consegui ler tudo. “Exige-se que todas as irmãs leais reportem a presença da mulher Moiraine Damodred. Ela deve ser detida, se possível, por quaisquer meios necessários, e trazida de volta à Torre para ser julgada pela acusação de traição”. O mesmo tipo de linguagem que parece ter sido usada a respeito de Elayne.
— Se Elaida quer Moiraine presa, deve significar que ela sabe que Moiraine tem ajudado Rand, e não gosta nem um pouco disso. — Falar era bom. Falar evitava que vomitasse. Traição. Mulheres eram espancadas por conta daquilo. Elaida quisera derrubar Moiraine. Agora, era Elaida quem faria isso por ela. — Elaida com certeza não vai apoiar Rand.
— Exatamente.
— Irmãs leais. Egwene, isso se encaixa na mensagem daquela mulher que Macura mencionou. O que quer que tenha acontecido com Siuan, as Ajahs estão divididas quanto a Elaida ser a Amyrlin. Deve ser isso.
— Claro que sim. Muito bom, Nynaeve. Eu ainda não tinha pensado por esse lado.
A mulher sorria com tanta satisfação que Nynaeve lhe retribuiu o sorriso.
— Há um relatório na escrivaninha de Siu… da Amyrlin, sobre uma reunião das Azuis. Eu estava lendo exatamente essa parte quando você gritou. Sou capaz de apostar que as Azuis não apoiaram Elaida. — Nas melhores épocas, as Ajahs Azul e Vermelha tinham uma espécie de trégua armada, mas, nas piores, chegavam perto de pular no pescoço uma da outra.