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fazer e o seu querido pai já não. Do que veio a passar-se depois não há

sinal na história, mas de ciência mui certa sabemos que se é verdade

que o trabalho do rapazinho ficou em meio, também é verdade que o

pedaço de madeira continua a andar por ali. Ninguém o quis queimar

ou deitar fora, quer fosse para que a lição do exemplo não viesse a cair

no esquecimento, quer fosse para ocaso de que a alguém lhe ocorresse

um dia a ideia de terminar a obra, eventualidade não de todo

impossível de produzir-se se tivermos em conta a enorme capacidade

de sobrevivência dos ditos lados escuros da natureza humana. Como já

alguém disse, tudo o que possa suceder, sucederá, é uma mera questão

de tempo, e, se não chegámos a vê-lo enquanto por cá andávamos, terá

sido só porque não tínhamos vivido o suficiente. Pelos modos, e para

que não se nos acuse de pintarmos tudo com as tintas da parte esquerda

da paleta. há quem admita a hipótese de que uma adaptação do

amavioso conto à televisão, após tê-lo recolhido um jornal, sacudidas as

teias de aranha, nas poeirentas prateleiras da memória colectiva, possa

contribuir para fazer regressar às quebrantadas consciências das

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famílias o culto ou o cultivo dos incorpóreos valores de espiritualidade

de que a sociedade se nutria no passado, quando o baixo materialismo

que hoje impera ainda não se tinha assenhoreado de vontades que

imaginávamos fortes e afinal eram a própria e insanável imagem de

uma confrangedora debilidade moral. Conservemos no entanto a

esperança. No momento em que aquela criança aparecer no ecrã,

estejamos certos de que metade da população do país correrá a buscar

um lenço para enxugar as lágrimas e de que a outra metade, talvez de

temperamento estóico, as irá deixar correr pela cara abaixo, em silêncio,

para que melhor possa observar-se como o remorso pelo mal feito ou

consentido não é sempre uma palavra vã. oxalá ainda estejamos a

tempo de salvar os avós.

Inesperadamente, com uma deplorável falta de sentido de oportu-

nidade, os republicanos decidiram aproveitar a delicada ocasião para

fazerem ouvir a sua voz. Não eram muitos, nem sequer tinham

representação no parlamento apesar de se encontrarem organizados em

partido político e concorrerem regularmente aos actos eleitorais.

Vangloriavam-se no entanto de certa influência social, sobretudo nos

meios artísticos e literários, por onde de vez em quando faziam circular

manifestos no geral bem redigidos, mas invariavelmente inócuos.

Desde que a morte havia desaparecido que não davam sinal de vida,

nem ao menos, como se esperaria de uma oposição que se diz frontal,

para reclamarem o esclarecimento da rumorejada participação da

máphia no ignóbil tráfico de padecentes terminais. Agora, apro-

veitando-se da perturbação em que o país malvivia, dividido como

estava entre a vaidade de saber-se único em todo o planeta e o

desassossego de não ser como toda a gente, vinham pôr sobre a mesa

nada mais nada menos que a questão do regime. obviamente adver-

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sários da monarquia, inimigos do trono por definição, pensavam ter

descoberto um novo argumento a favor da necessária e urgente

implantação da república. Diziam que ia contra a lógica mais comum

haver no país um rei que nunca morreria e que, ainda que amanhã

resolvesse abdicar por motivo de idade ou amolecimento das facul-

dades mentais, rei continuaria a ser, o primeiro de uma sucessão infinita

de entronizações e abdicações, uma infinita sequência de reis deitados

nas suas camas à espera de uma morte que nunca chegaria, uma

correnteza de reis meio vivos meio mortos que, a não ser que os

arrumassem nos corredores do palácio, acabariam por encher e por fim

não caber no panteão onde haviam sido recolhidos os seus antecessores

mortais, que já não seriam mais que ossos desprendidos dos engonços

ou restos mumificados e bafientos. Quão mais lógico não seria ter um

presidente da república com vencimento a prazo fixo, um mandato,

quando muito dois, e depois que se desenrasque como puder, que vá à

sua vida, dê conferências, escreva livros, participe em congressos, coló-

quios e simpósios, arengue em mesas redondas, dê a volta ao planeta

em oitenta recepções, opine sobre o comprimento das saias quando elas

voltarem a usar-se e sobre a redução do ozono na atmosfera se ainda

houver atmosfera, enfim, que se amanhe. Tudo menos ter de encontrar

todos os dias nos jornais e ouvir na televisão e na rádio aparte médica

sempre igual, não atam nem desatam, sobre a situação dos internados

nas enfermarias reais, as quais, vem a propósito informar, depois de

terem sido aumentadas duas vezes, já estariam à bica de uma terceira

ampliação. o plural de enfermaria está ali para indicar que, como

sempre sucede em instituições hospitalares ou afins, os homens se

encontram separados das mulheres, portanto, reis e príncipes para um

lado, rainhas e princesas para outro. os republicanos vinham agora

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desafiar o povo a assumir as responsabilidades que lhe competiam,

tomando o destino nas suas mãos para dar começo a uma vida nova e

abrindo um novo e florido caminho em direcção às alvoradas do porvir.

Desta vez o efeito do manifesto não se limitou a tocar os artistas e os

escritores, outras camadas sociais se mostraram receptivas à feliz

imagem do caminho florido e às invocações das alvoradas do porvir, o

que teve como resultado uma concorrência absolutamente fora do

comum de adesões de novos militantes dispostos a empreender uma

jornada que, tal como a pescada, que ainda na água lhe chamam assim,

já era histórica antes de se saber se realmente o viria a ser. Infelizmente

as manifestações verbais de cívico entusiasmo dos novos aderentes a

este republicanismo prospectivo e profético, nos dias que se seguiram,

nem sempre foram tão respeitadoras como a boa educação e uma sã

convivência democrática o exigem.

Algumas delas chegaram mesmo a ultrapassar as fronteiras do mais

ofensivo grosseirismo, como dizerem, por exemplo, falando das reale-

zas, que não estavam dispostos a sustentar bestas à argola nem burros a

pão-de-ló. Todas as pessoas de bom gosto estiveram de acordo em

considerar tais palavras, não só inadmissíveis, como também imper-

doáveis. Bastaria dizer-se que as arcas do estado não podiam continuar

a suportar mais o contínuo crescimento das despesas da casa real e seus

a latere, e toda a gente o compreenderia. Era verdade e não ofendia.

O violento ataque dos republicanos, mas principalmente os

inquietantes vaticínios veiculados no artigo sobre a inevitabilidade, em

prazo muito breve, de que as ditas arcas do estado não poderiam

satisfazer o pagamento de pensões de velhice e invalidez sem um fim à

vista, levaram o rei a fazer saber ao primeiro-ministro que precisavam

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de ter uma conversação franca, a sós, sem gravadores nem testemunhas

de qualquer espécie. Chegou o primeiro-ministro, interessou-se pelas