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Aquilo é alguma cousa que vem na carta, não tem outra explicação,

pensou enquanto procurava um lenço para enxugar as lágrimas. Não se

enganava. se se atrevesse a entrar outra vez no gabinete veria o

director-geral a andar rapidamente de um lado para outro, com uma

expressão de desvairo na cara, como se não soubesse o que fazer e ao

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mesmo tempo tivesse a consciência clara de que só ele, e ninguém mais,

é que poderia fazê-lo. o director olhou o relógio, olhou a folha de papel,

murmurou em voz muito baixa, quase em segredo, Ainda há tempo,

ainda há tempo, depois sentou-se a reler a carta misteriosa enquanto

passava a mão livre pela cabeça num gesto mecânico, como se quisesse

certificar-se de que ainda a tinha ali no seu lugar, de que não a perdera

engolida pelo vórtice de medo que lhe retorcia o estômago. Acabou de

ler, ficou com os olhos perdidos no vago, pensando, Tenho de falar com

alguém, depois acudiu-lhe à mente, em seu socorro, a ideia de que

talvez se tratasse de uma piada, de uma piada de péssimo gosto, um

telespectador descontente, como há tantos, e ainda por cima de

imaginação mórbida, quem tem responsabilidades directivas na

televisão sabe muito bem que não é tudo por lá um mar de rosas, Mas

não é a mim que em geral se escreve a desabafar, pensou. Como era

natural, foi este pensamento que o levou a ligar finalmente à secretária

para perguntar, Quem foi que trouxe esta carta, Não sei, senhor

director, quando cheguei e abri a porta do seu gabinete, como sempre

faço, ela já aí estava, Mas isso é impossível, durante a noite ninguém

tem acesso a este gabinete, Assim é, senhor director, Então como se

explica, Não mo pergunte a mim, senhor director, há pouco quis dizer-

lhe o que se havia passado, mas o senhor director nem sequer me deu

tempo, Reconheço que fui um pouco brusco, desculpe, Não tem

importância, senhor director, mas doeu-me muito. O director-geral

voltou a perder a paciência, se eu lhe dissesse o que tenho aqui, então é

que a senhora saberia o que é doer. E desligou. Tornou a olhar o relógio,

depois disse consigo mesmo, É a única saída, não vejo outra, há

decisões que não me compete a mim tomar. Abriu uma agenda,

procurou o número que lhe interessava, encontrou-o, Aqui está, disse.

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As mãos continuavam a tremer, custou-lhe acertar com as teclas e ainda

mais acertar com a voz quando do outro lado lhe responderam, Ligue-

me ao gabinete do senhor primeiro-ministro, pediu, sou o director da

televisão, o director-geral. Atendeu o chefe de gabinete, Bons dias,

senhor director, muito prazer em ouvi-lo, em que posso ser-lhe útil,

Necessito que o senhor primeiro-ministro me receba o mais rapida-

mente possível por um assunto de extrema urgência, Não pode dizer-

me de que se trata para que eu o transmita ao senhor primeiro-ministro,

Lamento muito, mas é-me impossível, o assunto, além de urgente, é

estritamente confidencial, No entanto, se pudesse dar-me uma ideia,

Tenho em meu poder, aqui, diante destes olhos que a terra há-de comer,

um documento de transcendente importância nacional, se isto que lhe

estou a dizer não é suficiente, se não é bastante para que me ponha

agora mesmo em comunicação com o senhor primeiro-ministro onde

quer que se encontre, temo muito pelo seu futuro pessoal e político, E

assim tão sério, só lhe digo que, a partir deste momento, cada minuto

que tiver passado é de sua exclusiva responsabilidade, Vou ver o que

posso fazer, o senhor primeiro-ministro está muito ocupado, Pois então

desocupe-o, se quiser ganhar uma medalha, Imediatamente, Ficarei à

espera, Posso fazer-lhe outra pergunta, Por favor, que mais quer saber

ainda, Por que foi que disse estes olhos que a terra há-de comer, isso era

dantes, Não sei o que o senhor era dantes, mas sei o que é agora, um

idiota chapado, passe-me ao primeiro-ministro, já. A insólita dureza das

palavras do director-geral mostra a que ponto o seu espírito se encontra

alterado. Tomou-o uma espécie de obnubilação, não se conhece, não

percebe como foi possível ter insultado alguém apenas por lhe ter feito

uma pergunta absolutamente razoável, quer nos termos, quer na

intenção. Terei de lhe pedir desculpa, pensou arrependido, amanhã

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poderei vir a precisar dele. A voz do primeiro-ministro soou impa-

ciente, Que se passa, perguntou, os problemas da televisão, que eu

saiba, não são comigo, Não se trata da televisão, senhor primeiro-

ministro, tenho uma carta, sim, já me disseram que tem uma carta, e

que quer que lhe faça, só venho rogar-lhe que a leia, nada mais, o resto,

para usar as suas mesmas palavras, não será comigo, Noto que está

nervoso, sim, senhor primeiro-ministro, estou mais do que nervoso, E

que diz essa misteriosa carta, Não lho posso dizer pelo telefone, A linha

é segura, Mesmo assim nada direi, toda a cautela é pouca, Então

mande-ma, Terei de lha entregar em mão, não quero correr o risco de

enviar um portador, Mando-lhe eu alguém daqui, o meu chefe de

gabinete, por exemplo, pessoa mais perto de mim será difícil, senhor

primeiro-ministro, por favor, eu não estaria aqui a incomodá-lo se não

tivesse um motivo muito sério, preciso absolutamente que me receba,

Quando, Agora mesmo, Estou ocupado, senhor primeiro-ministro, por

favor, Bom, já que tanto insiste, venha, espero que o mistério valha a

pena, obrigado, vou a correr. o director-geral pousou o telefone, meteu

a carta no sobrescrito, guardou-a num dos bolsos interiores do casaco e

levantou-se. As mãos haviam deixado de tremer, mas a testa tinha-a

alagada de suor. Limpou a cara com o lenço, depois chamou a secretária

pelo telefone interno, disse-lhe que ia sair, que chamasse o carro. o facto

de ter passado a responsabilidade para outra pessoa acalmara-o um

pouco, dentro de meia hora o seu papel neste assunto haverá termi-

nado. A secretária apareceu à porta, o carro está à espera, senhor

director, obrigado, não sei quanto tempo demorarei, tenho um encontro

com o primeiro-ministro, mas esta informação é só para si, Fique

descansado, senhor director, nada direi, Até logo, Até logo, senhor

director, que tudo lhe corra bem, Tal como estão as cousas, já não

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sabemos o que está bem e o que está mal, Tem razão, A propósito, como

se encontra o seu pai, Na mesma situação, senhor director, sofrer, não

parece sofrer, mas para ali está a definhar, a extinguir-se, já leva dois

meses naquele estado, e, visto o que vem acontecendo, só terei de

esperar a minha vez para que me estendam numa cama ao lado dele,

sabe-se lá, disse o director, e saiu.

O chefe de gabinete foi receber o director-geral à porta, cumpri-

mentou-o com secura evidente, depois disse, Acompanho-o ao senhor

primeiro-ministro. um minuto, antes quero pedir-lhe desculpa, havia

realmente um idiota chapado na nossa conversação, mas esse era eu, o

mais provável é que não fosse nenhum de nós, disse o chefe de gabinete

sorrindo, se pudesse ver o que levo dentro deste bolso compreenderia o

meu estado de espírito, Não se preocupe, quanto ao que me toca, está