para os empacotadores do defunto. No caso das cidades maiores, e com
distinção para a capital, metrópole desproporcionada em relação ao
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pequeno tamanho do país, a divisão do espaço urbano por talhões, com
vista ao estabelecimento de quotas proporcionais de participação no
bolo, como com fino espírito havia dito o desditoso presidente da asso-
ciação dos funerários, facilitaria enormemente a tarefa dos angariadores
de fretes humanos na sua correria contra o tempo. um outro efeito
subsequente da bandeira, não previsto, não esperado, mas que veio
mostrar a que ponto podemos estar equivocados quando nos dedi-
camos a cultivar cepticismos da espécie sistemática, foi o virtuoso gesto
de uns quantos cidadãos respeitadores das mais arraigadas tradições de
esmerada conduta social e que ainda usavam chapéu, descobrindo-se ao
passar diante das festoadas janelas e deixando no ar a dúvida admirável
de se o faziam por causa do falecido ou do símbolo vivo e sagrado da
pátria.
Os jornais, nem seria necessário dizê-lo, tiveram uma procura
enorme, maior ainda do que quando pareceu que se tinha deixado de
morrer. Claro que um grande número de pessoas já haviam sido infor-
madas pela televisão do cataclismo que lhes caíra sobre ascabeças,
muitas delas tinham até parentes mortos em casa à espera do médico e
bandeiras chorando na sacada, mas é muito fácil de compreender que
existe uma certa diferença entre a imagem nervosa de um director-geral
falando ontem à noite no pequeno ecrã e estas páginas convulsas,
agitadas, manchadas de títulos exclamativos e apocalípticos que se
podem dobrar, guardar no bolso e levar para reler em casa com todo o
vagar e de que nos contentaremos com respigar aqui estes poucos mas
expressivos exemplos, Depois Do Paraíso o Inferno, A Morte Dirige o
Baile, Imortais Por Pouco Tempo, outra Vez Condenados A Morrer,
Xeque-Mate, Aviso Prévio A Partir De Agora, sem Apelo E Com
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Agravo, um Papel De Cor Violeta, sessenta E Dois Mil Mortos Em
Menos De um segundo, A Morte Ataca À Meia-Noite, Ninguém Foge
Ao seu Destino, sair Do sonho Para Cair No Pesadelo, Regresso A
Normalidade, Que Fizemos Nós Para Merecer Isto, et caetera, et caetera.
Todos os jornais, sem excepção, publicavam na primeira página o
manuscrito da morte, mas um deles, para tornar mais fácil a leitura,
reproduziu o texto em letra de forma corpo catorze dentro de uma
caixa, corrigiu-lhe a pontuação e a sintaxe, acertou-lhe as conjugações
verbais, pôs as maiúsculas onde faltavam, sem esquecer a assinatura
final, que passou de morte a Morte, uma diferença inapreciável ao
ouvido, mas que irá provocar nesse mesmo dia um indignado protesto
da autora da missiva, também por escrito e no mesmo papel de cor
violeta. segundo a opinião autorizada de um gramático consultado pelo
jornal, a morte, simplesmente, não dominava nem sequer os primeiros
rudimentos da arte de escrever. Logo a caligrafia, disse ele, é estranha-
mente irregular, parece que se reuniram ali todos os modos conhecidos,
possíveis e aberrantes de traçar as letras do alfabeto latino, como se
cada uma delas tivesse sido escrita por uma pessoa diferente, mas isso
ainda se perdoaria, ainda poderia ser tomado como defeito menor à
vista da sintaxe caótica, da ausência de pontos finais, do não uso de
parêntesis absolutamente necessários, da eliminação obsessiva dos
parágrafos, da virgulação aos saltinhos e, pecado sem perdão, da
intencional e quase diabólica abolição da letra maiúscula, que, imagine-
se, chega a ser omitida na própria assinatura da carta e substituída pela
minúscula correspondente. Uma vergonha, uma provocação, conti-
nuava o gramático, e perguntava, se a morte, que teve o impagável
privilégio de assistir no passado aos maiores génios da literatura,
escreve desta maneira, como não o farão amanhã as nossas crianças se
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lhes dá para imitar semelhante monstruosidade filológica, a pretexto de
que, andando a morte por cá há tanto tempo, deverá saber tudo de
todos os ramos do conhecimento. E o gramático terminava, os dispa-
rates sintácticos que recheiam a lamentável carta levar-me-iam a pensar
que estaríamos perante uma gigantesca e grosseira mistificação se não
fosse a tristíssima realidade, a dolorosa evidência de que a terrível
ameaça se cumpriu. Na tarde deste mesmo dia, como já havíamos
antecipado, chegou à redacção do jornal uma carta da morte exigindo,
nos termos mais enérgicos, a imediata rectificação do seu nome, senhor
director, escrevia, eu não sou a Morte, sou simplesmente morte, a Morte
é uma cousa que aos senhores nem por sombras lhes pode passar pela
cabeça o que seja, vossemecês, os seres humanos, só conhecem, tome
nota o gramático de que eu também saberia pôr vós, os seres humanos,
só conheceis esta pequena morte quotidiana que eu sou, esta que até
mesmo nos piores desastres é incapaz de impedir que a vida continue,
um dia virão a saber o que é a Morte com letra grande, nesse momento,
se ela, improvavelmente, vos desse tempo para isso, perceberíeis a
diferença real que há entre o relativo e o absoluto, entre o cheio e o
vazio, entre o ainda ser e o não ser já, e quando falo de diferença real
estou a referir-me a algo que as palavras jamais poderão exprimir,
relativo, absoluto, cheio, vazio, ser ainda, não ser já, que é isso, senhor
director, porque as palavras, se o não sabe, movem-se muito, mudam
de um dia para o outro, são instáveis como sombras, sombras elas
mesmas, que tanto estão como deixaram de estar, bolas de sabão,
conchas de que mal se sente a respiração, troncos cortados, aí lhe fica a
informação, é gratuita, não cobro nada por ela, entretanto preocupe-se
com explicar bem aos seus leitores os comos e os porquês da vida e da
morte, e, já agora, regressando ao objectivo desta carta, escrita, tal como
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a que foi lida na televisão, de meu punho e letra, convido-o instante-
mente a cumprir aquelas honradas disposições da lei de imprensa que
mandam rectificar no mesmo lugar e com a mesma valorização gráfica
o erro, a omissão ou o lapso cometidos, arriscando-se neste caso o
senhor director, se esta carta não for publicada na íntegra, a que eu lhe
despache, amanhã mesmo, com efeitos imediatos, o aviso prévio que
tenho reservado para si daqui por alguns anos, não lhe direi quantos
para não lhe amargar o resto da vida, sem outro assunto, subscrevo-me
com a atenção devida, morte. A carta apareceu pontualíssima no dia
seguinte com derramadas desculpas do director e também em dupli-
cado, isto é, manuscrita e em letra deforma, corpo catorze e caixa. só
quando o jornal saiu à rua é que o director se atreveu a sair do bunker
em que se havia encerrado a sete chaves a partir do momento em que
leu a cominatória carta. E tão assustado estava ainda que se recusou a
publicar o estudo grafológico que um importante especialista na
matéria lhe foi entregar pessoalmente. Já basta que me tivesse metido
em sarilhos com a assinatura da morte com maiúscula, disse, leve a sua