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quando não convém que os dinheiros passem directamente de uma mão

a outra. o gerente foi abrir o cofre, contou as notas e perguntou

enquanto as entregava, Dão-me um recibo, um documento que me

garanta a protecção, Nem recibo, nem garantia, terá de contentar-se

com a nossa palavra de honra, De honra, Exactamente, de honra, não

imagina até que ponto honramos a nossa palavra, onde poderei

encontrá-los se tiver algum problema, Não se preocupe, nós o encontra-

remos a si, Acompanho-os à saída, Não vale a pena levantar-se, já

conhecemos o caminho, virar à esquerda depois do armazém de

ataúdes, sala de maquilhagem, corredor, recepção, a porta da rua é logo

ali, Não se perderão, Temos um sentido de orientação muito apurado,

nunca nos perdemos, por exemplo, na quinta semana depois desta virá

alguém aqui para fazer a cobrança, Como saberei se se trata da pessoa

própria, Não terá nenhuma dúvida quando a vir, Boas tardes, Boas

tardes, não tem nada que nos agradecer.

Finalmente, last but not least, a igreja católica, apostólica e romana

tinha muitos motivos para estar satisfeita consigo mesma. Convencida

desde o princípio de que a abolição da morte só poderia ter sido obra do

diabo e de que para ajudar a deus contra as obras do demo nada é mais

poderoso que a perseverança na prece, tinha posto de lado a virtude da

modéstia que com não pequeno esforço e sacrifício ordinariamente

cultivava, para passar a felicitar-se, sem reservas, pelo êxito da

campanha nacional de orações cujo objectivo, recordemo-lo, fora rogar

ao senhor deus que providenciasse o regresso da morte o mais rapida-

mente possível para poupar a pobre humanidade aos piores horrores,

fim de citação. As preces haviam demorado quase oito meses a chegar

ao céu, mas há que pensar que só para atingir o planeta marte

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precisamos de seis, e o céu, como é fácil de imaginar, deverá estar muito

mais para lá, treze mil milhões de anos-luz de distância da terra,

números redondos. Na legítima satisfação da igreja havia, porém, uma

sombra negra. Discutiam os teólogos, e não se punham de acordo, sobre

as razões que teriam levado deus a mandar regressar subitamente a

morte, sem ao menos dar tempo para levar a extrema-unção aos

sessenta e dois mil moribundos que, privados da graça do último

sacramento, haviam expirado em menos tempo do que leva a dizê-lo. A

dúvida de que deus teria autoridade sobre a morte ou se, pelo contrário,

a morte seria o superior hierárquico de deus, torturava em surdina as

mentes e os corações do santo instituto, onde aquela ousada afirmação

de que deus e a morte eram as duas caras da mesma moeda passara a

ser considerada, mais do que heresia, abominável sacrilégio. Isto era o

que se vivia por dentro. À vista de toda a gente o que preocupava

realmente a igreja era a sua participação no funeral da rainha-mãe.

Agora que os sessenta e dois mil mortos comuns já descansavam nas

suas últimas moradas e não atrapalhavam o trânsito na cidade, era

tempo de levar a veneranda senhora, convenientemente encerrada no

seu caixão de chumbo, ao panteão real. Como os jornais não se

esqueceriam de escrever, virava-se uma página da história.

É possível que só uma educação esmerada, daquelas que já se vêm

tornando raras, a par, talvez, do respeito mais ou menos supersticioso

que nas almas timoratas a palavra escrita costuma infundir, tenha

levado os leitores, embora motivos não lhes faltassem para manifestar

explícitos sinais de mal contida impaciência, a não interromperem o que

tão profusamente viemos relatando e a quererem que se lhes diga o que

é que, entretanto, a morte andou a fazer desde a noite fatal em que

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anunciou o seu regresso. Dado o papel importante que desempenharam

nestes nunca vistos sucessos, bem está que tivéssemos explicado com

abundância de pormenores como responderam à súbita e dramática

mudança de situação os lares do feliz ocaso, os hospitais, as companhias

de seguros, a máphia e a igreja católica, porém, a não ser que a morte,

levando em conta a enorme quantidade de defuntos que era preciso

enterrar nas horas imediatas, houvesse decidido, num inesperado e

louvável gesto de simpatia, prolongar a sua ausência por mais alguns

dias a fim de dar tempo a que a vida tornasse a girar nos antigos eixos,

outra gente falecida de fresca data, isto é, logo nos primeiros dias da

restauração do regime, teria por força de vir juntar-se aos infelizes que

durante meses haviam mal-vivido entre cá e lá, e desses novos mortos,

como imporia a lógica, deveríamos ter que falar. No entanto, não

sucedeu tal, a morte não foi tão generosa. O motivo da pausa em que

durante oito dias ninguém morreu e que começou por criar a falaz

ilusão de que afinal nada tivesse mudado, resultava simplesmente das

actuais pautas de relacionamento entre a morte e os mortais, ou seja,

que todos eles passariam a ser avisados de antemão de que ainda

disporiam de uma semana de vida, por assim dizer até ao vencimento

da livrança, para resolverem os seus assuntos, fazer testamento, pagar

os impostos em atraso e despedir-se da família e dos amigos mais

chegados. Em teoria parecia uma boa ideia, mas a prática não tardaria a

demonstrar que não o era tanto. Imagine-se uma pessoa, dessas que

gozam de uma esplêndida saúde, dessas que nunca tiveram uma dor de

cabeça, optimistas por princípio e por claras e objectivas razões, e que,

uma manhã, saindo de casa para o trabalho, encontra na rua o

prestimoso carteiro da sua área, que lhe diz, Ainda bem que o vejo,

senhor fulano, trago aqui uma carta para si, e imediatamente vê

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aparecer nas mãos dele um sobrescrito de cor violeta a que talvez ainda

não desse especial atenção, porquanto poderia tratar-se de mais uma

impertinência dos senhores da publicidade directa, se não fosse a

estranha caligrafia com que o seu nome está nele escrito, igualzinha à

do famoso fac simile publicado no jornal. se o coração lhe der nesse

instante um salto de susto, se o invadir o pressentimento lúgubre de

uma desgraça sem remédio, e quiser, por isso, negar-se a receber a

carta, não o conseguirá, será então como se alguém, segurando-o

suavemente pelo cotovelo, o estivesse ajudando a descer o degrau, a

evitar a casca de banana no chão, a fazê-lo virar a esquina sem tropeçar

nos próprios pés. Também não valerá a pena tentar rasgá-la em

pedaços, já se sabe que as cartas da morte são por definição

indestrutíveis, nem um maça-rico de acetileno funcionando à máxima

força seria capaz de entrar com elas, e o ardil ingénuo de fingir que se

lhe caiu da mão seria igualmente inútil porque a carta não se deixa

soltar, fica como pegada aos dedos, e, se, por um milagre, o contrário

pudesse suceder, é certo e sabido que logo apareceria um cidadão de

boa vontade a recolhê-la e a correr atrás do falso distraído para lhe

dizer, Creio que esta carta lhe pertence, talvez seja importante, e ele