obrigatório fazerem-no todos os seres humanos, porém ele não sabe que
neste momento é como se fosse imortal porque esta morte que o olha
não sabe como o há-de matar. o homem mudou de postura, virou as
costas ao guarda-roupa que condenava a porta e deixou escorregar o
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braço direito para o lado do cão. um minuto depois estava acordado.
Tinha sede. Acendeu o candeeiro da mesa-de-cabeceira, levantou-se,
enfiou nos pés os chinelos que, como sempre, estavam debaixo da
cabeça do cão, e foi à cozinha. A morte seguiu-o. o homem deitou água
para um copo e bebeu. o cão apareceu nesta altura, matou a sede no
bebedouro ao lado da porta que dá para o quintal e depois levantou a
cabeça para o dono. Queres sair, claro, disse o violoncelista. Abriu a
porta e esperou que o animal voltasse. No copo tinha ficado um pouco
de água. A morte olhou-a, fez um esforço para imaginar o que seria ter
sede, mas não o conseguiu. Também não o teria conseguido quando
teve de matar pessoas à sede no deserto, mas então nem sequer o havia
tentado. O animal já regressava, abanando o rabo. Vamos dormir, disse
o homem. Voltaram ao quarto, o cão deu duas voltas sobre si mesmo e
deitou-se enroscado. o homem tapou-se até ao pescoço, tossiu duas
vezes e daí a pouco entrou no sono. sentada no seu canto, a morte
olhava. Muito mais tarde, o cão levantou-se do tapete e subiu para o
sofá. Pela primeira vez na sua vida a morte soube o que era ter um cão
no regaço.
Momentos de fraqueza na vida qualquer um os poderá ter, e, se hoje
passámos sem eles, tenhamo-los por certos amanhã. Assim como por
detrás da brônzea couraça de aquiles se viu que pulsava um coração
sentimental, bastará que recordemos a dor de cotovelo padecida pelo
herói durante dez anos depois de que agamémnon lhe tivesse roubado
a sua bem-amada, a cativa briseida, e logo aquela terrível cólera que o
fez voltar à guerra gritando em voz estentória contra os troianos
quando o seu amigo pátroclo foi morto por heitor, também na mais
impenetrável de todas as armaduras até hoje forjadas e com promessa
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de que assim irá continuar até à definitiva consumação dos séculos, ao
esqueleto da morte nos referimos, há sempre a possibilidade de que um
dia venha a insinuar-se na sua medonha carcaça, assim como quem não
quer a cousa, um suave acorde de violoncelo, um ingénuo trilo de
piano, ou apenas que a visão de um caderno de música aberto sobre
uma cadeira te faça lembrar aquilo em que te recusas a pensar. que não
havias vivido e que, faças o que fizeres, não poderás viver nunca. salvo
se. Tinhas observado com fria atenção o violoncelista adormecido, esse
homem a quem não conseguiste matar porque só pudeste chegar a ele
quando já era demasiado tarde, tinhas visto o cão enroscado no tapete, e
nem sequer a este animal te seria permitido tocar porque tu não és a sua
morte, e, na tépida penumbra do quarto, esses dois seres vivos que
rendidos ao sono te ignoravam só serviram para aumentar na tua
consciência o peso do malogro. Tu, que te havias habituado a poder o
que ninguém mais pode, vias-te ali impotente, de mãos e pés atados,
com a tua licença para matar zero zero sete sem validez nesta casa,
nunca, desde que és morte, reconhece-o, havias sido a esse ponto
humilhada. Foi então que saíste do quarto para a sala de música, foi
então que te ajoelhaste diante da suite número seis para violoncelo de
johann sebastian bach e fizeste com os ombros aqueles movimentos
rápidos que nos seres humanos costumam acompanhar o choro convul-
sivo, foi então, com os teus duros joelhos fincados no duro soalho, que a
tua exasperação de repente se esvaiu como a imponderável névoa em
que às vezes te transformas quando não queres ser de todo invisível.
Voltaste ao quarto, seguiste o violoncelista quando ele foi à cozinha
beber água e abrir a porta ao cão, primeiro tinha-lo visto deitado e a
dormir, agora via-lo acordado e de pé, talvez devido a uma ilusão de
óptica causada pelas riscas verticais do pijama parecia muito mais alto
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que tu, mas não podia ser, foi só um engano dos olhos, uma distorção
da perspectiva, está aí a lógica dos factos para nos dizer que a maior és
tu, morte, maior que tudo, maior que todos nós. ou talvez nem sempre
o sejas, talvez as cousas que sucedem no mundo se expliquem pela
ocasião, por exemplo, o luar deslumbrante que o músico recorda da sua
infância teria passado em vão se ele estivesse a dormir, sim, a ocasião,
porque tu já eras outra vez uma pequena morte quando regressaste ao
quarto e te foste sentar no sofá, e mais pequena ainda te fizeste quando
o cão se levantou do tapete e subiu para o teu regaço que parecia de
menina, e então tiveste um pensamento dos mais bonitos, pensaste que
não era justo que a morte, não tu, a outra, viesse um dia apagar o
brasido suave daquele macio calor animal, assim o pensaste, quem
diria, tu que estás tão habituada aos frios árctico e antárctico que fazem
na sala em que te encontras neste momento e aonde a voz do teu omi-
noso dever te chamou, o de matar aquele homem a quem, dormindo,
parecia desenhar-se-lhe na cara o ricto amargo de quem em toda a sua
vida nunca havia tido uma companhia realmente humana na cama, que
fez um acordo com o seu cão para que cada um sonhe com o outro, o
Cão com o homem, o homem com o cão, que se levanta de noite com o
seu pijama às riscas para ir à cozinha matar a sede, claro que seria mais
cómodo levar um copo de água para o quarto quando se fosse deitar,
mas não o faz, prefere o seu pequeno passeio nocturno pelo corredor até
à cozinha, no meio da paz e do silêncio da noite, com o cão que sempre
vai atrás dele e às vezes pede para ir ao quintal, outras vezes não, Este
homem tem de morrer, dizes tu.
A morte é novamente um esqueleto envolvido numa mortalha, com
o capuz meio descaído para a frente, de modo a que o pior da caveira
lhe fique tapado, mas não valia a pena tanto cuidado, se essa foi a
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preocupação, porque aqui não há ninguém para se assustar com o
macabro espectáculo, tanto mais que à vista só aparecem os extremos
dos ossos das mãos e dos pés, estes descansando nas lajes do chão, cuja
gélida frialdade não sentem, aquelas folheando, como se fossem um
raspador, as páginas do volume completo das ordenações históricas da
morte, desde o primeiro de todos os regulamentos, aquele que foi
escrito com uma só e simples palavra, matarás, até às adendas e aos
apêndices mais recentes, em que todos os modos e variantes do morrer
até agora conhecidos se encontram compilados, e deles se pode dizer
que nunca a lista se esgota. A morte não se surpreendeu com o
resultado negativo da consulta, na verdade, seria incongruente, mas
sobretudo seria supérfluo que num livro em que se determina para todo
e qualquer representante da espécie humana um ponto final, um
remate, uma condenação, a morte, aparecessem palavras como vida e
viver, como vivo e viverei. Ali só há lugar para a morte, nunca para
falar de hipóteses absurdas como ter alguém conseguido escapar a ela.
isso nunca se viu. Porventura, procurando bem, fosse possível
encontrar ainda uma vez, uma só vez, o tempo verbal eu vivi numa