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– Arranquei todos os dias de Maio e Junho – disse Susan –, e ainda vinte dias de Julho. Arranquei-os e amachuquei-os até nada mais serem que um punhado de papéis a meu lado. Foram dias difíceis de passar, como borboletas de asas queimadas pelo sol, incapazes de voar. Já só faltam oito dias. Daqui a oito dias, às seis e vinte e cinco, descerei do comboio e poisarei os pés na plataforma. Então, a minha liberdade desfraldará as velas, afastando para bem longe estas restrições que queimam e enchem de pregas – horas de ordem e disciplina, e o estar aqui no momento preciso. O dia desabrochará no preciso momento em que abrir a porta da carruagem e vir o meu pai, com o seu velho chapéu e polainas. Tremerei. Debulhar-me-ei em lágrimas. Depois, na manhã seguinte, levantar-me-ei ao amanhecer. Sairei pela porta da cozinha. Irei passear na charneca. Os enormes cavalos dos cavaleiros fantasmas correrão atrás de mim apenas para parar subitamente. Verei a andorinha vasculhar a erva, procurando alimento. Deixar-me-ei cair na margem do rio e ficarei a ver os peixes deslizar por entre as canas. As palmas das minhas mãos ficarão cheias de marcas provocadas pelas agulhas dos pinheiros. Lá conseguirei tirar de dentro de mim aquilo que aqui foi construído; qualquer coisa dura. Sei que, ao longo dos invernos e verões que aqui passei, qualquer coisa se formou nas escadas e nos quartos. Ao contrário da Jinny, não quero ser admirada. Não quero que as pessoas levantem os olhos e me fitem, admiradas, sempre que entro numa sala. Quero dar, dar-me, e preciso de solidão, da solidão que me permitirá revelar tudo o que possuo.

Depois, voltarei para casa caminhando através dos carreiros estreitos que se ocultam por baixo dos arcos formados pelas folhas das avelaneiras. Passarei por uma velha que empurra um carrinho cheio de pauzinhos; e pelo pastor. Contudo, não trocaremos qualquer palavra. Voltarei a atravessar o jardim frente à cozinha, e verei as folhas das couves carregadas de gotas de orvalho, e a casa no meio do jardim, cega devido às janelas cheias de cortinas. Subirei as escadas que levam ao quarto e passarei revista a tudo aquilo que possuo e que está fechado com todo o cuidado no guarda-vestidos: as minhas conchas; os meus ovos; as minhas ervas estranhas. Darei de comer às pombas e ao esquilo. Irei até ao canil escovar o pêlo do cão. Assim, aos poucos, acabarei por expulsar esta coisa dura que cresceu aqui comigo, do meu lado. Contudo, as campainhas não param de tocar; os pés arrastam-se pelo chão num movimento perpétuo.

– Detesto a escuridão, o sono e a noite – disse Jinny –, e não me canso de esperar pelo dia. Gostava que a semana fosse apenas um dia, sem quaisquer divisões. Quando acordo cedo, e são os pássaros que me acordam, fico deitada a ver os puxadores de bronze do armário tornarem-se mais claros; depois a bacia; depois o toalheiro. À medida que as coisas no quarto se vão tornando mais claras, o coração bate-me mais depressa. Sinto o corpo enrijecer e tornar-se cor-de-rosa, amarelo, castanho. Passo as mãos pelo corpo e pelas pernas. Sinto os seus declives, a sua espessura. Adoro ouvir o gongo ecoar pela casa, dando assim início ao ruído, aqui um baque, ali uma rápida sucessão de passos. As portas batem; a água corre. “Começou outro dia, começou outro dia!”, exclamo, pondo os pés no chão. Pode muito bem não vir a ser um dia bom, antes se revelando imperfeito. É com frequência que me repreendem. É com frequência que caio em desgraça por ser preguiçosa e me estar sempre a rir; mas mesmo quando Miss Mathews resmunga qualquer coisa sobre o quanto sou cabeça-de-vento, consigo captar algo que se move – talvez uma mancha de sol poisada num quadro, ou o burro puxando a máquina de ceifar através da encosta; ou uma vela passando por entre as folhas do loureiro. O certo é que não me deixo abater. Miss Mathews não me pode impedir de dar graças.

Está a chegar a hora de deixar a escola e usar saias compridas. Durante a noite usarei muitos colares e um vestido branco, sem mangas. Irei a muitas festas em salões iluminados; e um homem acabará por me escolher, dizendo-me o que nunca antes disse a mais ninguém. Gostará mais de mim que da Susan ou da Rhoda. Verá em mim uma qualquer qualidade, uma característica particular. Todavia, não me deixarei prender por uma única pessoa. Não quero ser presa, pregada. Tremo e estremeço, tal como uma folha abandonada ao vento, quando me sento na cama a abanar os pés, como um dia novo à frente, pronto para ser descoberto. Tenho à minha frente cinquenta, sessenta anos para gastar. Ainda não preciso de começar a usar as reservas. Estou apenas no começo.

– Passam-se horas e horas – disse Rhoda –, antes de poder apagar a luz e deitar-me na cama, suspensa por sobre o mundo, antes de poder deixar cair o dia, antes de poder deixar crescer a minha árvore, estremecendo por sobre mim em grandes pavilhões verdes. Aqui não a posso deixar crescer. Há sempre alguém pronto a deitá-la abaixo. Não param de me fazer perguntas e de me interromper.

Agora vou até à casa de banho, tiro os sapatos e lavo-me; mas, enquanto me lavo, enquanto baixo a cabeça para a bacia, deixo que o véu da imperatriz russa flutue à altura dos meus ombros. Na testa brilham-me os diamantes da coroa imperial. Ouço o rugir da tuba hostil quando me aproximo da varanda. Agora, esfrego as mãos com tal força, que a Miss (esqueci-me do nome) não consegue suspeitar que estou a ameaçar com o punho a multidão enraivecida. “Sou a vossa imperatriz, gentalha.” A minha atitude é de desafio. Não tenho medo, pertenço à raça dos conquistadores.

Contudo, trata-se de um sonho pouco consistente. Trata-se de uma árvore de papel. Miss Lambert fá-la desaparecer nos ares. Até mesmo a visão da sua figura esgueirando-se pelo corredor fá-la desfazer-se em átomos. Este sonho da imperatriz não é sólido; não me satisfaz. Agora, que já foi destruído, deixa-me a tremer de frio. Irei até à biblioteca, escolherei um livro e ali ficarei, ora a ler ora a olhar; ora a olhar ora a ler. Está aqui um poema a respeito de uma vedação. Seguirei junto a ela e colherei flores, rosas silvestres e trepadeiras sinuosas. Apertá-las-ei com força nas mãos, e acabarei por as colocar na superfície brilhante da secretária. Sentar-me-ei na margem trêmula do rio e ficarei a ver os lírios-de-água, largos e brilhantes, que iluminam o carvalho que se debruça por sobre a vedação com os raios de luar reflectidos na sua própria luz líquida. Apanharei flores; unirei todas as flores numa grinalda, e, depois de esta estar pronta, irei dá-la de presente... Oh! A quem? O fluxo do meu ser não corre como deveria; um curso de água profundo esbarra em qualquer obstáculo; sacode-se; luta; um qualquer nó existente no centro oferece resistência. Oh, esta dor, esta angústia! Desfaleço, caio. O meu corpo perde a rigidez; é como se me tivesse tirado o lacre, estou em brasa. Agora, a corrente transformou-se num fluxo fertilizador, forçando tudo o que encontra pela frente. A quem oferecerei tudo o que corre através de mim, pelo meu corpo quente e poroso? Colherei um ramo de flores e vou oferecê-las... Oh! A quem?