Выбрать главу

Marinheiros e casais apaixonados percorrem a procissão; os autocarros abandonam a costa e dirigem-se para a cidade. Darei; contribuirei para enriquecer qualquer coisa; devolverei toda esta beleza ao mundo. Recolherei as minhas flores até elas formarem um único núcleo, e, avançando de mão estendida, dá-las-ei.... Oh! A quem?

– Acabamos de receber – disse Louis –, pois trata-se do último dia do último período, o nosso último dia, para mim, para o Bernard e para o Neville, aquilo que os mestres tinham para nos dar. Concluiu-se a introdução; o mundo está apresentado. Eles ficam; nós partimos. O Grande Professor, o homem a quem mais respeito, balançou-se um pouco por entre as mesas e os livros, falou-nos a respeito de Horácio, Tennyson, das obras completas de Keats, e também de Mathew Arnold. Respeito a mão que tudo isto nos deu a conhecer. Fala com a mais completa das convicções. Para si, e muito embora não se passe o mesmo connosco, as palavras que diz são verdadeiras. Com aquela voz rouca característica dos estados emocionais profundos, disse-nos que estávamos prestes a partir. Pediu-nos para sairmos como homens. (Nos seus lábios, tanto as citações da Bíblia como as do The Times têm a mesma magnificência.) Alguns de nós farão isto; outros aquilo. Alguns nunca mais se verão. O Neville, o Bernard e eu nunca mais nos voltaremos a encontrar aqui. A vida far-nos-á seguir caminhos diversos. Contudo, constituímos alguns laços. Terminaram os anos infantis, irresponsáveis. Contudo, forjamos algumas ligações. Acima de tudo, herdamos tradições.

Marcos de pedra estão aqui há seiscentos anos. Nestas paredes encontram-se inscritos nomes de militares, estadistas, até mesmo de alguns poetas infelizes (o meu estará entre os deles). Deus abençoe as tradições, todos os limites destinados a nos salvaguardar! Estou deveras grato a todos vós, homens de capas negras, e também a vós, já mortos, por nos terem guiado; contudo, ao fim ao cabo, o problema permanece. As diferenças ainda não foram resolvidas. As flores continuam a espreitar pelas janelas. Vejo aves selvagens, e no meu coração agitam-se impulsos ainda mais selvagens que os pássaros. Os meus olhos têm uma expressão desvairada; aperto os lábios com força. A ave voa; a flor dança; mas nunca deixo de escutar o bater monótono das ondas; e a fera acorrentada continua a bater as patas lá na praia. Não pára de bater. Bate e vai batendo.

– Esta é a cerimônia final – disse Bernard. – Esta é a última de todas as nossas cerimônias. Estamos dominados por estranhos sentimentos. O guarda que segura a bandeira está prestes a soprar o apito; o comboio não para de soltar colunas de vapor e estará pronto a partir daqui a alguns instantes. Uma pessoa sente-se tentada a dizer qualquer coisa, a sentir qualquer coisa de absolutamente apropriado à ocasião. Sente-se a cabeça fervilhar: os lábios estão apertados. Uma abelha entra em cena a zumbir, esvoaçando em torno do bouquet de flores de Lady Hampton, a esposa do director, que não pára de o cheirar, como que para demonstrar ter apreciado o cumprimento. E se a abelha lhe desse uma ferroada no nariz? Estamos todos profundamente comovidos; e, no entanto, irreverentes; penitentes; desejosos de que tudo acabe e relutantes em partir. A abelha distrai-nos; o seu voo ao acaso parece fazer diminuir a nossa concentração. Zumbindo de forma vaga, movendo-se em círculos largos, acabou por poisar no cravo. Muitos de nós não se voltarão a ver. Não voltaremos a gozar certos prazeres quando formos livres de nos deitar e levantar quando muito bem nos apetecer, e quando eu já não precisar de ler textos imortais às escondidas, à luz de cotos de velas. A abelha zumbe agora em torno da cabeça do Grande Professor. Larpent, Jolin, Archie. Percival, Baker e Smith – gostei imenso de os conhecer. Apenas conheci um rapaz louco. Apenas odiei um rapaz mesquinho. Divirto-me imenso a relembrar aqueles pequenos-almoços à mesa do director, compostos por torradas e marmelada. Ele é o único que não repara na abelha.

Se ela lhe poisasse no nariz, afastá-la-ia com um gesto magnífico. Acabou de dizer uma piada. A sua voz quase deixou de se ouvir. Estamos livres das nossas obrigações, o Louis, o Neville e eu, para sempre. Pegamos nos livros de capas polidas, todos escritos com a caligrafia própria dos eruditos, miúda e desenhada. Levantamo-nos; dispersamos; a pressão deixa de se fazer sentir. A abelha transformou-se num insecto insignificante e desrespeitoso, voando através da janela ao encontro da obscuridade. Partimos amanhã.

– Estamos quase a partir – disse Neville. – As malas estão aqui; os carros estão aqui. Lá está o Percival com o seu chapéu de coco. Acabará por me esquecer. Não responderá às minhas cartas, deixando-as esquecidas por entre armas e cães. Enviar-lhe-ei poemas, e talvez me responda com bilhetes postais. Mas é exactamente por isso que o amo. Propor-lhe-ei um encontro, talvez por baixo de um relógio, junto a uma Cruz; ficarei à sua espera e ele não comparecerá. Sairá da minha vida sem sequer disso se aperceber. E, por incrível que pareça, eu sairei ao encontro de outras vidas; isto é, apenas uma capa, um prelúdio. Começo a sentir, muito embora mal consiga aguentar o discurso pomposo do director e as suas emoções fingidas, que as coisas de que nos tínhamos apercebido se estão a aproximar. Serei livre para entrar no jardim onde Fenwick levanta o malho. Aqueles que me desprezaram reconhecerão a minha sabedoria. Contudo, e devido a qualquer lei obscura do meu ser, nem o poder nem a sabedoria serão o suficiente para mim; andarei sempre à procura da privacidade e a murmurar palavras solitárias. E é assim que vou, na dúvida, mas exaltado; apreensivo e com uma dor intolerável; mas pronto a descobrir o que quero depois de muito sofrimento. Ali, vejo pela última vez a estátua do nosso piedoso fundador, as pombas poisadas na sua cabeça. Elas nunca pararão de esvoaçar em torno da sua cabeça, embranquecendo-a, enquanto na capela o órgão não pára de tocar. Assim, ocuparei o lugar que me foi reservado no compartimento, e, quando isso acontecer, ocultarei os olhos com um livro para que não vejam que choro; ocultarei os olhos para observar; para olhar de esguelha para o rosto. Estamos no primeiro dia das férias grandes.

– Estamos no primeiro dia das férias grandes – disse Susan. – Mas o dia ainda está enrolado. Não o examinarei até ao momento em que poisar na plataforma, ao fim da tarde. Não me darei sequer ao trabalho de o cheirar até sentir nas narinas o vento fraco dos campos. Contudo, estes já não são os terrenos da escola; estas já não são as vedações da escola; os homens que estão nos campos praticam acções reais; enchem carroças com feno verdadeiro; e aquelas são vacas reais, em nada semelhantes às vacas da escola. No entanto, o cheiro a ácido carbólico dos corredores e o odor a giz característico das salas não me abandonam o nariz. Trago ainda nos olhos o brilho uniforme da ardósia. Para enterrar profundamente a escola que tanto odeio tenho de esperar pelos campos e pelas vedações, pelos bosques e pelos pastos, pelas vedações pontiagudas das estações ferroviárias, juncadas de giestas e carruagens descansando nas linhas secundárias, pelos túneis e pelos jardins suburbanos onde as mulheres penduram a roupa nos estendais, e de novo pelos campos e pelos portões onde as crianças se baloiçam.

Nunca passarei uma noite que seja da minha vida em Londres, nem mandarei os meus filhos para a escola. Aqui, nesta enorme estação, todas as coisas têm um eco vazio. A luz é amarelada, semelhante à que nos chega através de um toldo. A Jinny vive aqui. A Jinny passeia o cão nestas ruas. As pessoas daqui andam pelas ruas em silêncio. Não olham para mais nada a não ser para as montras das lojas. As suas cabeças não param de fazer o mesmo movimento simultâneo, para cima e para baixo. As ruas estão atadas umas às outras pelos fios do telégrafo. As casas são todas de vidro, enfeitadas com festões e toda a espécie de brilhos; agora, todas são portas principais e cortinas de renda, pilares e degraus brancos. Mas o certo, lá vou eu, de novo para longe de Londres; estou de novo nos campos; vejo as casas, as mulheres, que penduram a roupa às árvores, e os pastos. Londres apresenta-se agora velada, acabando por se dobrar sobre si mesma e desaparecer. O ácido carbólico e a resina começam agora a perder o seu sabor. Cheira-me a milho e a nabos. Desfaço um embrulho de papel amarrado com um fio de algodão branco. As cascas de ovo rebolam para a depressão que separa os meus dois joelhos. As estações vão-se seguindo umas às outras. As mulheres beijam-se e ajudam-se mutuamente a carregar os cestos. Agora, já posso abrir a janela e deitar a cabeça de fora. O ar entra-me às golfadas pelo nariz e pela garganta – este ar fresco, este ar com sabor a sal e cheiro a nabos. E lá está o meu pai, de costas voltadas, a falar com um agricultor. Estremeço. Choro. Lá está o meu pai com as suas palavras. Lá está o meu pai.