No entanto, desmembrado e sem nada onde me possa segurar (está ali um rio; um homem pesca; vê-se ali um pináculo, ali a rua principal da aldeia com as suas janelas em arco) tudo me parece um sonho, sem contornos definidos. Estes pensamentos duros, esta inveja, esta amargura, nada disto me atinge. Sou o fantasma do Louis, um viandante efêmero, em cuja mente os sonhos são poderosos, e os jardins ecoam quando, de manhã bem cedo, as pétalas flutuam em profundezas insondáveis e as aves cantam. Mergulho nas águas límpidas da infância. O véu fino que a cobre estremece. Mas, lá na praia, o animal acorrentado não cessa de bater as patas.
– O Louis e o Neville – disse Bernard – estão ambos em silêncio. Estão ambos absortos. Ambos sentem a presença dos outros como se de um muro se tratasse, um muro que os isola. Todavia, se me retiro em companhia dos outros, as palavras de imediato se elevam dos meus lábios como se fossem anéis de fumo. É como se chegassem um fósforo a um monte de lenha; algo se incendeia. Entra agora um viajante, um homem idoso, de aparência próspera. De imediato sinto desejo dele me aproximar; há qualquer coisa na sua presença fria, não assimilada, que me desgosta profundamente. Não acredito em separações. Não somos seres individuais. Para mais, tenho vontade de alargar a minha colecção de observações valiosas a respeito da verdadeira natureza humana. Por certo que a minha obra constará de muitos volumes e abrangerá todos os tipos conhecidos de homens e mulheres. Encho a mente com todos os elementos de uma sala ou de uma carruagem, do mesmo modo que os outros enchem uma caneta de tinta-permanente. Tenho uma sede impossível de mitigar. Através de sinais imperceptíveis, os quais só mais tarde poderei interpretar, sinto que a sua atitude provocatória está prestes a esmorecer. A solidão que demonstra parece estar prestes a estalar. Acabou de dizer qualquer coisa a respeito de uma casa de campo. Um círculo de fumo eleva-se dos meus lábios (a respeito de colheitas) e gira em volta dele, obrigando-o a estabelecer contacto. A voz humana tem uma qualidade desarmante (não somos seres individuais, somos um todo). À medida que trocamos algumas frases a respeito de casas de campo é como se o polisse e tornasse real. Como marido é tolerante, se bem que infiel; trata-se de um pequeno mestre-de-obra com alguns homens a trabalhar para si. É importante na sociedade a que pertence; já atingiu a posição de conselheiro, e, com o tempo, talvez venha a ser presidente de câmara. Pendurado na corrente do relógio, está um qualquer enfeite de coral, uma espécie de dente arrancado pela raiz. Walter J. Trumble é o tipo de nome que lhe ficaria bem. Esteve na América com a mulher, a tratar de negócios, e um quarto de casal numa pensão importante custou-lhe o equivalente a um mês de salário. Um dos dentes da frente é de ouro.
Bom, o certo é que não tenho jeito para grandes reflexões. Preciso de sentir o concreto em tudo. Só assim me consigo apropriar do mundo. Contudo, dá-me a sensação de que uma frase tem existência própria. Mesmo assim, penso que é na completa solidão que se produz o melhor. As minhas palavras são cálidas e solúveis, carecem de um certo arejamento que não lhes posso dar. Mesmo assim, o meu método tem vantagens. Por exemplo, a vulgaridade de um indivíduo como Trumble faz com que o Neville se afaste. O Louis, caminhando com o passo alto das garças desdenhosas, vai apanhando palavras como se para isso se servisse de pinças. É certo que os seus olhos – ariscos, sorridentes, mas também desesperados – expressam algo que não conseguimos alcançar. Há qualquer coisa de exacto e preciso em relação ao Neville e ao Louis, algo que tanto admiro e que nunca possuirei. Começo agora a aperceber-me da necessidade de agir. Aproximamo-nos de um entroncamento; é aqui que devo mudar. Tenho de apanhar um comboio para Edimburgo. Sinto que não consigo encarar este facto – escapa-se-me por entre os dedos como um botão, como uma moedinha. Aqui vem o revisor pedir os bilhetes. Eu tinha um – claro que tinha um. Mas isso não interessa. Ou o encontro ou não o encontro. Procuro na carteira. Vasculho os bolsos. São coisas deste tipo que estão constantemente a interromper o processo no qual me vejo sempre envolvido, e que se prende com a procura da frase perfeita que se adeque a este momento.
– O Bernard foi-se embora sem bilhete – disse Neville. – Escapou-se como uma frase, um aceno. Falava com a mesma facilidade com que nos falava tanto a um canalizador como a um criador de cavalos. O canalizador aceitava-o com devoção. Se tivesse um filho como ele, pensava, arranjava maneira de o mandar para Oxford. Mas que sentiria o Bernard pelo canalizador? Será que não desejaria apenas continuar a sequência da história que nunca pára de contar a si mesmo? Começou-a em criança quando desfazia o pão em migalhas. Esta migalha era um homem, aquela uma mulher.
Somos todos migalhas. Somos todos frases na sua história, factos que anota na letra A ou B. Revela uma incrível compreensão quando conta a nossa história, excepto no que se refere ao que sentimos. O certo é que não precisa de nós. Tudo está à nossa mercê. Ali está ele, na plataforma, a acenar. O comboio partiu sem ele. Perdeu a ligação. Perdeu o bilhete.
Mas isso não importa. Acabará por falar com o empregado do bar a respeito do destino humano. Estamos de fora; ele já nos esqueceu; saímos do seu ângulo de visão; continuamos repletos de sensações, meio-doces, meio-amargas, pois, e, de certa forma, ele é digno de piedade, enfrentando o mundo com as suas frases incompletas e sem o bilhete. Mesmo assim, também merece ser amado.
Volto a fingir que estou a ler. Levanto o livro até este quase me tapar os olhos. Todavia, sou incapaz de ler frente a canalizadores e criadores de cavalos. Não tenho o poder de inspirar simpatia. Não admiro aquele homem; ele não me admira. Deixem-me ao menos ser honesto. Deixem-me denunciar este mundo fútil, oco, em paz consigo mesmo; estes assentos de pele de cavalo; estas fotografias a cores de molhes e paredões. É claro que poderia denunciar em voz alta a mediocridade deste mundo, que produz negociantes de cavalos que usam berloques de coral nas correntes dos relógios. Há em mim a capacidade de os consumir por completo. As minhas gargalhadas fá-los-ão revolver-se nos assentos; fá-los-ão uivar à minha frente. Não; eles são imortais. São eles quem triunfam. Farão com que nunca me seja possível ler Catulo numa carruagem de terceira classe. Farão com que em Outubro me refugie numa universidade, onde acabarei por me tornar professor; e ir até à Grécia dar palestras no Parténon. Seria melhor criar cavalos e viver numa daquelas casas vermelhas do que passar a vida a revolver-me nas caveiras de Sófocles e Eurípides, semelhante a uma larva, tendo por companheira uma esposa de vasta erudição, uma dessas mulheres das universidades. Apesar de tudo, será esse o meu destino. Sofrerei. Aos dezoito anos, sou capaz de mostrar uma tão grande dose de desprezo, que os criadores de cavalos me odeiam. É esse o meu triunfo; sou incapaz de compromissos. Não sou tímido; não tenho qualquer sotaque estranho. Ao contrário do Louis, não preciso de me preocupar com o que irão as pessoas pensar por o meu pai ser banqueiro em Brisbane”.
Aproximamo-nos do mundo civilizado. Já vejo os gasômetros. Lá estão os jardins municipais por onde passam linhas asfaltadas. Lá estão os amantes, deitados na relva sem qualquer pudor, as bocas apertadas umas contra as outras. O Percival deve estar quase na Escócia; por certo que o comboio onde viajava atravessa charnecas avermelhadas; por certo que deve estar a ver a linha composta pelas montanhas que marcam o início do país, bem assim como o muro romano. Deve estar a ler um livro policial e a entender tudo o que lá está.