O comboio abranda e alonga-se à medida que nos aproximamos de Londres, do centro, e o meu coração quase que salta, de medo, de satisfação. Estou prestes a encontrar... o quê? Que aventuras extraordinárias me esperarão por entre estas carrinhas dos correios, estes bagageiros, estes enxames de gente à espera de táxi? Sinto-me insignificante, perdido, mas também satisfeito. Paramos com um ligeiro solavanco. Vou deixar que os outros saiam antes de mim. Deixar-me-ei ficar sentado durante mais um instante antes de sair ao encontro daquele caos, daquele tumulto. Tentarei não antecipar o que está para vir. Sinto um enorme rugido nos ouvidos, qualquer coisa que, por baixo deste telhado de vidro, lembra o barulho do mar. Despejam-nos na plataforma com as malas na mão. O turbilhão faz com que nos separemos. O meu sentido de unidade, o desprezo que me caracteriza, quase desaparece. Sou arrastado pela multidão. Afasto-me da plataforma agarrado a tudo o que possuo – uma mala.
O Sol já nasceu. Barras de amarelo e verde incidem na praia, dourando as traves do barco carcomido e fazendo com que as algas emitam reflexos azul metalizado. A luz quase que atravessa as finas ondas que se estendem pela praia. A rapariga que abanou a cabeça, fazendo dançar todas as jóias, os topázios, as águas-marinhas, as contas cor de água com lampejos de fogo, desnudou agora a testa e, de olhos bem abertos, traça um caminho em linha recta por sobre as ondas. Os seus brilhos tremeluzentes escurecem; os seus abismos verdes aprofundam-se e escurecem, podendo ser atravessados por cardumes errantes de peixes. À medida que se quebram e recolhem, deixam atrás de si, na praia, uma orla composta por raminhos e cascas de árvore, palhas e pedaços de madeira, tal como se uma chalupa se tivesse quebrado contra as rochas, os marinheiros tivessem nadado para a terra, e, do alto do penhasco, vissem a frágil embarcação em que seguiam ser arrastada para a praia.
No jardim, as aves que até então haviam cantado de forma esporádica, anunciando a alvorada, ora nesta árvore ora naquele arbusto, cantavam agora em coro, alto e bom som; ora juntas (como se estivessem conscientes da companhia) ora a sós (como se para homenagear o pálido céu azul). Como se tivessem combinado, levantavam voo em conjunto quando viam um gato preto avançar por entre os arbustos; quando viam a cozinheira atirar mais uma pá de cinza para o monte já grande do dia anterior. O seu canto revelava medo, dor e apreensão, e também a alegria de terem conseguido escapar no instante preciso. Para mais, cantavam também de felicidade no ar fresco da manhã, voando alto por cima do ulmeiro, cantando em conjunto ao se perseguirem mutuamente, escapando-se, tentando agarrar-se enquanto voltejavam nos ares. E então, cansadas de voar e da perseguição, desceram devagar, com suavidade, acabando por poisar e se sentar em silêncio na árvore, no muro, com os olhos brilhantes sempre alerta, e as cabeças ora viradas nesta ou naquela direcção; vivos, despertos; profundamente conscientes de uma casa, de um determinado objecto.
Sem parar de olhar de um lado para o outro, começaram a examinar mais em profundidade, virando as cabeças para o nível inferior ao das flores, para as avenidas escuras que compõem o mundo obscuro onde as folhas apodrecem e as flores acabam por cair. Então, um dos pássaros, fazendo um voo rasante, ataca o corpo mole e indefeso de um verme monstruoso, bicando-o repetidas vezes até acabar por decidir deixá-lo apodrecer. Lá em baixo, entre as raízes, onde as flores apodreciam, e elevava-se nos ares toda a espécie de cheiros indicadores de morte; formavam-se gotas nos flancos inchados e entumecidos das coisas. A pele da fruta podre rebentava, e a matéria tornava-se demasiado espessa para correr. As lesmas deixavam atrás de si uma série de excreções amarelas, e, de vez em quando, um corpo amorfo com uma cabeça em ambas as extremidades abanava-se devagar de um lado para o outro. As aves de olhos dourados, poisadas entre as folhas, observavam de forma zombeteira toda aquela purulência, aquela viscosidade. De vez em quando, espetavam as pontas dos bicos na mistura pegajosa.
Também agora o sol atingiu a janela, tocando a cortina orlada a vermelho, começando a criar círculos e linhas. Agora, à luz da claridade que não parava de aumentar, a sua brancura poisava na bandeja; a lâmina condensava o seu brilho. As cadeiras e os armários apareciam de forma indistinta mais atrás, o que fazia com que, muito embora fossem objectos diferentes, parecessem ser incapazes de se separar. O espelho cobria a parede de branco. A flor que repousava no parapeito da janela tinha por companhia uma flor fantasma. Todavia, aquela espécie de espectro fazia parte da flor, pois que quando se soltava um botão, um outro abria na forma mais pálida, reflectida no espelho.
O vento começou a soprar. As ondas batiam com força na praia, como se fossem guerreiros de turbante, como se fossem homens de turbante com azagaias envenenadas que, erguendo os braços, avançassem contra rebanhos compostos por ovelhas brancas.
– Aqui, na faculdade, onde a agitação da vida e o modo como esta nos pressiona são tremendos, onde a excitação de viver se torna cada dia mais urgente, aqui a complexidade das coisas torna-se óbvia – disse Bernard. – A toda a hora descubro coisas novas. “Que sou eu?”, pergunto. Isto? Não, sou aquilo. Principalmente agora, que abandonei uma sala cheia de gente a conversar, e os meus passos solitários ressoam nas lajes, e vejo a lua elevar-se, sublime, indiferente, por sobre a antiga capela, é então que se torna claro que não sou um ser uno e simples, mas antes complexo e múltiplo. Em público, o Bernard não se cala; em privado, é misterioso. É por isso que eles não compreendem, pois por certo que estão a falar a meu respeito, dizendo que lhes escapo, que sou evasivo. Não compreendem que tenho de passar por muitas transformações; que tenho de comandar as entradas e as saídas dos diferentes homens que desempenham o papel de Bernard. Tenho uma capacidade anormal para me aperceber das circunstâncias. Sou incapaz de ler um livro no comboio sem perguntar: “Será ele um construtor? Será ela infeliz?”. Por exemplo, hoje apercebi-me claramente da amargura com que o pobre Simes (ele e a sua borbulha) sentia serem diminutas as hipóteses que tinha de impressionar o Billy Jackson. O facto doeu-me, e foi com ardor que o convidei para jantar. Ele talvez vá atribuir o que se passou a uma admiração que não é minha. Claro que estou a dizer a verdade. Mas, para além da sensibilidade própria das mulheres (e aqui estou a citar o meu biógrafo) Bernard possuía a sobriedade lógica de um homem. As pessoas que apenas retêm uma impressão das coisas, a qual costuma ser quase sempre boa (pois parece existir uma qualquer virtude na simplicidade), são as que mantêm o equilíbrio no meio da corrente. (De imediato vejo um cardume de peixes com os narizes apontados na mesma direcção.) Canon, Lycett, Peters, Hawkins, Larpent, Neville, todos são peixes a nadar no meio da corrente. Mas tu compreendes, tu, o meu eu, que respondes sempre que te chamo (seria terrível esperar e não obter resposta; só isso explicaria a expressão dos homens idosos que frequentam os clubes, há muito que deixaram de chamar por um eu que não responde), tu compreendes que aquilo que disse esta noite apenas representa uma parte superficial do meu ser. No fundo, é quando estou mais distante que me sinto mais integrado. Sou efusivamente simpático; também me sento, tal como um sapo num charco, recebendo com toda a calma seja o que for que o destino me reserva. Poucos de vós, que agora discutem a meu respeito, têm a dupla capacidade de sentir, de raciocinar. Repare, o Lycett continua a correr atrás das lebres; o Hawkins passou uma tarde atarefadissima na biblioteca. O Peters tem uma namoradinha na biblioteca móvel. Vocês estão todos comprometidos, envolvidos, absorvidos, e completamente activados dos pés à cabeça, todos menos o Neville, cuja mente é demasiado complexa para se interessar por uma única actividade. Eu também sou demasiado complexo. No meu caso, há algo que permanece a flutuar, sem se prender a nada.