– O vento levanta a persiana – disse Susan. – Jarras, taças, tapetes, e até mesmo a velha poltrona coçada, aquela que tem um buraco, tudo se tornou distante. As mesmas listras desmaiadas espalham-se pelo papel de parede. As aves deixaram de cantar em coro, e apenas uma teima em o fazer, junto à janela do quarto. Vou calçar as meias e esgueirar-me em silêncio pela porta, atravessar a cozinha e o jardim, passar junto à estufa e acabar no prado. É ainda muito cedo. A charneca está coberta de nevoeiro. O dia é duro e áspero como uma mortalha de linho. Porém, acabará por se tornar macio e por aquecer. A esta hora, a esta hora matinal e calma, julgo-me o campo, o celeiro, as árvores; os bandos de aves pertencem-me, o mesmo se passando com esta jovem lebre, que dá um passo no preciso momento em que a estou prestes a pisar. Minha é a garça que, com indolência, estende as enormes asas; a vaca que vai ruminando à medida que avança; o vento e as andorinhas ariscas; o vermelho desmaiado do céu e o verde em que este acaba por se transformar; o silêncio e os sinos a tocar; o chamamento do homem que atrela os cavalos ao carro, tudo me pertence.
Não posso ser dividida, separada. Mandaram-me para a escola; mandaram-me para a Suíça para completar a minha educação. Odeio linóleo; odeio figueiras e montanhas. Deixem-me antes deitar neste solo liso, tendo por cima de mim um céu muito pálido onde as nuvens se movem devagar. O carro vai-se tornando cada vez maior à medida que sobe a estrada. As aves juntam-se no meio do correio – ainda não precisam de voar. O fumo vai-se elevando. A rigidez do amanhecer vai desaparecendo. O dia começa a se agitar. Assiste-se ao regressar da cor. As cearas e o dia vão-se tornando amarelos. A terra pesa bastante por baixo dos pés.
Mas, afinal, quem sou eu, esta pessoa que se encosta ao portão e observa o nariz do cão que a acompanha? Às vezes penso (ainda não cheguei aos vinte) que não sou uma mulher, mas antes a luz que incide neste portão, no solo. Por vezes, penso ser as estações do ano, Janeiro, Maio, Novembro; a lama, o nevoeiro, a alvorada. Não posso ser empurrada para o meio dos outros sem me misturar com eles. Contudo, apoiada ao portão, sinto um peso que se formou junto a mim e me acompanha. Na Suíça, quando estava na escola, formou-se em mim qualquer coisa, qualquer coisa de forte.
Nada de suspiros e gargalhadas, de rodeios e frases ingênuas; nada que se compare à estranha forma de comunicar característica da Rhoda, o modo como ela nos olha por cima do ombro quando nos avista; nem as piruetas da Jinny, uma criatura que parece ter sido feita de uma só peça, tronco e membros. O que tenho para dar é pesado. Não consigo flutuar com suavidade nem misturar-me com os outros. Prefiro o olhar dos pastores que encontro no caminho; o olhar das ciganas que alimentam os filhos ao lado das carroças, exactamente do mesmo modo que amamentarei os meus filhos. Já não falta muito para que, ao calor do meio-dia, com as abelhas a zumbir em torno das malvas, o meu amado entre em cena. Por certo que estará à sombra do cedro. Responderei à sua saudação com apenas uma palavra. Dar-lhe-ei aquilo que se formou em mim. Terei filhos, criadas de avental, camponeses com forquilhas, uma cozinha para onde levarão os cordeiros doentes para que se possam aquecer, onde os presuntos e as réstias de cebolas brilharão à luz. Serei como a minha mãe, silenciosa no seu avental azul, fechando à chave todos os armários.
Estou com fome. Vou chamar o cão. Vêm-me à ideia imagens de côdeas, miolo de pão, manteiga e pratos brancos colocados numa divisão cheia de sol. Voltarei a casa através dos campos. Caminharei por entre a erva com passadas fortes e regulares, ora desviando-me para evitar uma poça ora saltando por cima de um arbusto. Vão-se formando gotas de suor na minha camisa grosseira; os sapatos tornam-se flexíveis e escuros. O dia já não revela sinais de dureza; antes adquiriu tonalidades cinzentas, verdes e ocres. As aves deixaram de se concentrar na estrada.
Regresso, qual raposa ou gato em cujas peles a geada deixou manchas cinzentas e cujas patas endureceram devido ao contacto com a terra dura. Abro caminho através das couves, o que faz com que as suas folhas estalem e o orvalho que nelas repousa vá caindo aos poucos. Sento-me à espera de ouvir os passos do meu pai arrastando-se através da passagem, apertando uma qualquer erva entre os dedos. Vou enchendo chávena após chávena, enquanto as flores que ainda não abriram se mantêm muito direitas na jarra que se encontra na mesa, por entre os frascos de compota, os pãezinhos e a manteiga.
Mantemo-nos em silêncio.
Vou até ao armário e pego nas sacas úmidas onde se guardam as sultanas; espalho a farinha na mesa da cozinha, a qual está impecavelmente limpa. Amasso; estendo; bato; enfio as mãos no interior quente da massa. Deixo que a água fria se espalhe por entre os meus dedos. O lume ruge; as moscas zumbem em círculos. Todas as minhas passas-de-corinto e bagos de arroz, os saquinhos azuis e prateados, tudo isto voltou a ser fechado no armário. A carne está ao lume; a massa para o pão vai aumentando de tamanho por baixo de uma toalha limpa, adquirindo o formato de uma cúpula. De tarde, desço até ao rio. O mundo está-se a reproduzir por inteiro. As moscas vão voando de erva em erva. As flores estão pesadas devido ao pólen. Os cisnes vogam pelas águas na mais perfeita das ordens. As nuvens, agora quentes e manchadas de sol, voam por sobre as colinas, deixando um rasto dourado na água e no pescoço dos cisnes. Levantando uma pata a seguir à outra, as vacas vão ruminando enquanto percorrem o pasto. Vasculho a erva à procura de um cogumelo branco; parto-lhe o caule e apanho a orquídea cor de rubi que cresce junto a ele, acabando por juntar ambas as coisas ao pé uma da outra, a terra ainda agarrada às raízes. Está na hora de ir para casa preparar o chá para o meu pai e servi-lo na mesa onde se encontram as rosas vermelhas.
É então que chega a noite e se acendem as luzes. E quando a noite chega e as luzes se acendem, a hera como que fica iluminada por um halo amarelo. Sento-me junto à mesa com a minha costura. Penso na Jinny; na Rhoda; e ouço o ruído provocado pelas rodas das carroças puxadas pelos cavalos da quinta ao regressarem a casa; o vento nocturno traz-me o rugido do trânsito. Olho para as folhas que estremecem no jardim às escuras e penso: “Estão todos em Londres a dançar. A Jinny está a beijar o Louis.”
– É tão estranho – disse Jinny – que as pessoas durmam, que apaguem as luzes e subam as escadas. A estas horas já tiraram os vestidos e puseram camisas de dormir brancas. Já não há luzes em nenhuma daquelas casas. Os contornos das chaminés recortam-se contra o céu; na rua, umas duas lâmpadas ardem do modo que lhes é peculiar quando delas ninguém precisa. Nas ruas só se vêem alguns pobres apressados. Nesta rua não existe ninguém; o dia terminou. Há alguns polícias nas esquinas. No entanto, só agora começou a noite. Sinto-me brilhar na escuridão. Sinto o toque da seda nos joelhos. Esfrego suavemente uma perna contra a outra. Sinto no pescoço o toque frio das pedras do colar. Sinto os pés comprimidos dentro dos sapatos. Estou sentada muito direita para não tocar com o cabelo no espaldar da cadeira. Estou enfeitada, estou preparada. Esta é apenas uma pausa momentânea; o instante escuro. Os violinistas acabaram de levantar os arcos.