Mas, infelizmente, não vês aquilo que vejo (este globo, cheio de figuras). Sentado à tua frente está um homem idoso bastante pesado, cheio de cabelos brancos. Vês-me pegar no guardanapo e desdobrá-lo. Vês-me encher um copo de vinho.
E, atrás de mim, vês uma porta por onde as pessoas vão passando. Mas, para te dar a minha vida, para que a possas entender, tenho de te contar uma história – e se elas são tantas, tantas –, histórias de infância, histórias do tempo da escola, de amores, casamentos, mortes, e assim por diante. Contudo, nenhuma é verdadeira. Mesmo assim, iguais a crianças, vamos contando histórias uns aos outros, e, para as conseguirmos decorar, inventamos estas frases ridículas, rebuscadas, belas.
Estou tão cansado de histórias, tão cansado de frases que assentam tão bem! Para mais, detesto projectos de vida concebidos em folhas de blocos de apontamentos! Começo a sentir saudades de um tipo de linguagem semelhante à que é usada pelos amantes, composta por palavras soltas e inarticuladas, semelhantes a pés arrastando-se no caminho. Começo a procurar um conceito que esteja mais de acordo com os momentos de humilhação e triunfo com que sempre acabamos por nos deparar de vez em quando. Deitado numa vala durante um dia de tempestade depois de ter estado a chover, vejo marcharem no céu nuvens grandes e pequenas. Nesses momentos, o que me delicia é a confusão, o peso, a fúria e a indiferença. São nuvens que não param de mover e de se transformar; qualquer coisa de sulfuroso e sinistro, arqueado; ameaçador até ao momento em que se estilhaça e desaparece, e lá estou eu, minúsculo, esquecido, na valeta. É nesses momentos que não consigo encontrar quaisquer vestígios de história, de conceito.
Mas entretanto, enquanto comemos, o melhor será irmos virando estas cenas, tal como as crianças viram as páginas de um livro de gravuras e escutam a ama dizer, ao mesmo tempo que aponta: “Aquilo é uma vaca. Aquilo é um barco”. Vamos virar as páginas, e, para tua alegria, acrescentarei alguns comentários nas margens.
No princípio, havia o quarto das crianças, com janelas que davam para um jardim, e, mais além, para o mar. Via qualquer coisa brilhante – sem dúvida que o puxador dourado de um armário. Era então que Mrs. Constable elevava a esponja acima da cabeça, espremia-a, e tanto à esquerda como à direita da minha coluna se espalhavam picadas de sensação. É por isso que, e desde que contenhamos a respiração, não mais deixamos de sentir estas picadas sempre que batemos contra uma cadeira, uma mesa, uma mulher – ou mesmo se caminharmos pelo jardim e bebermos este vinho. De facto, sempre que passo por uma casa de campo onde a luz da janela indica que aí nasceu uma criança, quase me sinto tentado a implorar que não espremam a esponja por sobre aquele novo corpo. Depois, havia o jardim e toda uma vasta panóplia de folhas que pareciam tudo rodear; flores ardendo como chamas nas profundezas verdes; um rato escondido atrás de uma folha de ruibarbo; a mosca que não parava de zumbir junto ao tecto do quarto, e um amontoado inocente de pratos com pão com manteiga. Todas estas coisas acontecem num segundo e duram para sempre. As faces começam por surgir de forma indefinida. Saem como que dos cantos. “Olá”, diz uma delas, “aquela é a Jinny, Aquele o Neville. Lá está o Louis vestido com um fato de flanela azul e um cinto de pele de cobra. Aquela é a Rhoda”. Esta tinha uma taça na qual fazia flutuar pétalas de flores brancas. Foi a Susan quem chorou no dia em que eu e o Neville estávamos na arrecadação. O facto derreteu a minha indiferença. O mesmo não se passou com o Neville. “Sendo assim”, disse, “eu sou eu, e não o Neville”, o que foi uma descoberta maravilhosa. A Susan chorou e eu segui-a. O lenço molhado e a visão das suas pequenas costas a subir e a descer como se de a alavanca de uma bomba se tratasse, soluçando pelo que lhe fora negado, deixou-me com os nervos arrasados. “Não é para isso que nascemos”, disse, e sentei-me junto dela em cima de umas raízes tão duras como esqueletos. Foi aí que me apercebi da presença daqueles inimigos que mudam, mas que estão sempre ali; as forças contra as quais lutamos. É impensável deixarmo-nos levar de forma passiva. “É esse o teu curso, mundo”, diz alguém, “o meu é este”. Sendo assim, “o melhor é explorarmos tudo” gritei, e, levantando-me de um salto, desci a encosta a correr junto com a Susan, tendo visto o rapaz que trabalhava nos estábulos andar de um lado para o outro com um enorme par de botas. Mais abaixo, através das profundezas das folhas, os jardineiros varriam as folhas com as suas grandes vassouras.
Sentada, a dama escrevia. Fulminados, deixamo-nos ficar quietos como se estivéssemos mortos. Pensei: “Não posso interferir com o mais pequeno movimento destas vassouras. Elas não param de varrer. Não se comparam à rigidez com que aquela mulher escreve. É estranho como não somos capazes de impedir os jardineiros de varrer nem de desalojar uma mulher. Ficaram comigo toda a vida. É como se tivéssemos acordado em Stonehenge, rodeados por um círculo de pedras enormes, estes inimigos, estas presenças. Foi então que um pardal levantou voo de uma árvore. E, dado estar apaixonado pela primeira vez na vida, construí uma frase – um poema a respeito de um pardal – uma única frase, pois na minha mente havia-se aberto uma fenda, uma daquelas súbitas transparências através das quais tudo se vê. Era então que surgiam mais travessas de pão com manteiga e mais moscas voando em círculos junto ao tecto, onde se amontoavam ilhas de luz, tremulas, opalinas enquanto os pingentes do lustre pingavam gotas azuis, que se amontoavam a um canto da lareira. Dia após dia, sempre que nos sentávamos para lanchar, observávamos estes sinais.
Mas éramos todos muito diferentes. A cera – a cera virgem que cobre a espinha dorsal –, fundiu-se em caminhos diferentes para cada um de nós. Os grunhidos do rapaz das botas a fazer amor com a criada por entre os arbustos; as roupas a secar estendidas na corda; o homem morto na valeta; a macieira iluminada pelo luar; o rato coberto de vermes; o lustre a pingar azul – a nossa cera branca foi moldada e manchada de forma diferente por cada uma destas coisas. O Louis desgostou-se com a natureza da carne humana; a Rhoda com a nossa crueldade; a Susan era incapaz de partilhar fosse o que fosse; o Neville queria ordem; a Susan amor; e assim sucessivamente. Sofremos imenso quando nos tivemos de separar no plano físico.
Contudo, fui poupado a estes excessos e sobrevivi a muitos dos meus amigos (se bem que agora esteja gordo, grisalho, e tenha o peito um pouco atrofiado) precisamente porque o que me delicia não é a imagem da vida vista a partir do telhado, mas sim da janela do terceiro andar. Não me interessa o que uma mulher pode dizer a um homem, mesmo que ele seja eu. Assim sendo, por que razão me incomodavam na escola? Por que razão se metiam comigo? Havia o director, marchando na direcção da capela como se comandasse um navio de guerra através de uma tempestade, dando ordens através de um megafone, pois as pessoas que ocupam lugares onde tenham de exercer autoridade acabam sempre por se tornar melodramáticas – ao contrário do Neville e do Louis, não o odiava nem o venerava. Sempre que nos sentávamos na capela, eu tomava notas. Viam-se ali pilares, sombras, placas de bronze invocando os mortos, rapazes passando cromos uns aos outros servindo-se do livro de orações como capa; o som de uma bomba ferrugenta; o director a trovejar a respeito da imortalidade e do facto de termos de dali sair como homens; e o Percival a coçar a coxa. Tomei toda uma série de notas para depois usar nas minhas histórias; desenhei quadros nas margens do bloco-notas, e assim me fui separando cada vez mais. Seguem-se duas ou três figuras que vi.