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Naquele dia, sentado na capela, o Percival não parava de olhar em frente. Tinha também o hábito de levar a mão à nuca. Todos os movimentos que fazia eram dignos de nota. Todos levávamos as mãos às respectivas nucas – mas sem qualquer sucesso. Ele possuía o tipo de beleza que se defende de qualquer carícia. Dado não ser minimamente precoce, lia tudo o que existia da nossa edificação sem fazer qualquer comentário, e pensava com aquela equanimidade (as palavras latinas surgem com naturalidade) que só o podia preservar de tantos actos mesquinhos e humilhações, e também de pensar que os laçarotes que a Lucy usava no cabelo e as suas faces rosadas eram o expoente da beleza feminina. Devido a estas defesas, o seu gosto acabou por se tornar requintadíssimo. Mas o melhor seria haver música, um qualquer canto feroz. Devia entrar agora pela janela uma canção de caça, entoada por uma forma de vida rápida e impossível de apreender – um som que fizesse eco por entre as colinas, acabando por esmorecer. Aqui o que é surpreendente, o que não podemos justificar, o que transforma a simetria em disparate – é isso que me vem à mente sempre que penso nele. O pequeno instrumento de observação é desmontado. Os pilares desmoronam-se; o director desaparece; sou possuído por uma estranha exaltação. Encontrou a morte numa corrida de cavalos, e, esta noite, enquanto descia Shaftesbury Avenue, aqueles rostos insignificantes e de contornos mal definidos que surgiam nas saídas do metropolitano, muitos indianos obscuros, as pessoas que morrem devido à fome e à doença, as mulheres enganadas, os cães espancados e as crianças chorosas – todos me pareciam ter sido roubados. Ele teria feito justiça. Tê-los-ia protegido. Por certo que aos quarenta anos teria chocado as autoridades. Nunca me ocorreu uma canção de embalar que fosse capaz de o sossegar.

Mas o melhor será voltar a mergulhar a colher num outro objecto minucioso a que chamamos de forma optimista “a Personalidade de um amigo” – o Louis. Não tirava os olhos do pregador. Parecia que todo o ser se lhe concentrava no aro das sobrancelhas. Tinha os lábios comprimidos; o olhar não se movia, mas era capaz de se iluminar subitamente com uma gargalhada. Sofria de frieiras, um dos castigos para quem tem problemas de circulação. Infeliz, sem amigos, mesmo apesar de exilado, por vezes, em momentos de confiança, era capaz de descrever o modo como as ondas varriam as praias da sua terra. O olho impiedoso da juventude fixava-se nas suas articulações inchadas. Mesmo assim, não tínhamos qualquer problema em perceber o quanto ele era severo e capaz. Eram muitas as vezes em que, deitados à sombra dos ulmeiros, a fingir que estávamos a ver o jogo de críquete, esperávamos a sua aparição, a qual raramente nos era concedida. Ressentíamo-nos do seu poder e adorávamos o Percival. Formal, desconfiado, levantando os pés como se fosse um grou, mesmo assim corria a história de que partira uma porta ao murro. Porém, o cume da sua montanha era demasiado despido, demasiado pedregoso para que este tipo de nevoeiro a ele aderisse. Não possuía aquelas ramificações que nos ligam aos outros. Permanecia isolado; enigmático ; um erudito capaz daquela minuciosidade inspirada que tem em si qualquer coisa de formidável. As minhas frases (o modo como descrevia a Lua) não mereciam a sua aprovação. Por outro lado, invejava-me quase até ao desespero pela facilidade por mim demonstrada em lidar com os criados. Não que não fosse capaz de se aperceber das suas próprias falhas. Era qualquer coisa que andava a par com o seu respeito pela disciplina. Daí ter conseguido obter sucesso. Apesar de tudo, não teve uma vida feliz. Mas reparem – os seus olhos vão-se tornando brancos, aqui, poisados na palma da minha mão. De súbito, a noção daquilo que as pessoas representam abandona-nos. Devolvo-o ao lago, onde por certo adquirirá algum brilho.

Segue-se-lhe o Neville – deitado de costas, os olhos fitos no céu estival. Flutuava à nossa volta um pedaço de lanugem de cardo, assombrando de forma indolente o recanto cheio de sol do pátio, e, se bem que nos escutasse, não estava totalmente longe. Foi graças a ele que aprendi algumas coisas sobre os clássicos latinos sem nunca os ter lido, tendo também ganho o hábito de pensar – por exemplo, a respeito de crucifixos e de estes serem marcas do diabo – o que nos leva a ter uma visão distorcida das coisas. Os nossos meios-amores e meios-ódios, e a ambiguidade por nós revelada a respeito de tudo isto, eram para ele insignificantes. O director palavroso e baloiçante, o qual fiz sentar frente à lareira a abanar os braços, para ele nada mais era que um instrumento da inquisição. O facto espevitava-o com um ardor que compensava a indolência característica dos homens que lêem Catulo, Horácio e Lucrécio, e, muito embora parecesse estar a dormitar sempre que assistia a um jogo de críquete, o seu cérebro, semelhante à língua de um papa-formigas, rápida, hábil, pegajosa, vasculhava todas as curvas e contra-curvas daquelas frases romanas, e nunca parava de procurar uma pessoa ao lado de quem se sentar.

E as saias compridas das mulheres dos professores passavam por nós com aquele ar ameaçador, e as mãos voavam-nos para os bonés. Éramos tomados por um enorme aborrecimento, uma monotonia incrível. Nada, mas mesmo nada, quebrava com a barbatana o deserto plúmbeo das águas. Nunca acontecia nada capaz de levantar o peso de uma monotonia tão intolerável. Os períodos sucediam-se. Crescíamos e mudávamos, pois o certo é que não passávamos de animais. Nem sempre estamos conscientes; comemos e bebemos de forma automática. Não só existimos em separado mas também em bolhas de matéria impossíveis de diferenciar entre si. Como um todo, um grupo de rapazes levanta-se e vai jogar críquete ou futebol.

Um exército marcha através da Europa. Reunimo-nos em parques e salões e opomo-nos a qualquer renegado (ao Neville, ao Louis e à Rhoda) que se atreve a ter uma existência separada.

Sou feito de maneira tal, que, mesmo quando ouço uma ou duas melodias, por exemplo, quando o Neville ou o Louis cantam, não deixo de me sentir irresistivelmente atraído pelo som do coro que entoa uma canção antiga, sem palavras e quase que despojada de sentido, a qual percorre todas as salas durante a noite; a que continuamos a ouvir ribombar junto a nós à medida que os automóveis e os autocarros transportam as pessoas para os teatros. (Escutem; os carros precipitam-se para lá deste restaurante; de vez em quando, no rio, há uma sirene que apita, o que indica a existência de um vapor dirigindo-se para o mar.) Se fosse num comboio e um caixeiro me oferecesse um pouco de rapé, por certo que aceitaria. Gosto do aspecto copioso, uniforme, quente, não muito esperto mas extremamente fácil e bastante duro das coisas; do modo como conversam os homens que frequentam os clubes e os bares; dos mineiros seminus – de tudo o que é directo e não tem outro fim em vista senão jantar, amar, fazer dinheiro e dar-se mais ou menos bem com os outros; de tudo o que não acalenta grandes esperanças, ideias, ou qualquer coisa do gênero; de tudo o que só pretende tirar bom proveito de si mesmo. Gosto de tudo isto. Era por isso que me juntava aos outros sempre que o Neville ou o Louis amuavam, virando-me as costas.

E foi assim, nem sempre da mesma forma ou seguindo uma ordem precisa, que a minha cobertura de cera se foi derretendo, gota a gota. Através desta transparência tudo se tornou visível, até mesmo aqueles campos maravilhosos onde nunca ninguém esteve e que a princípio só o luar iluminava; prados cobertos de rosas e crocos, e também de rochas e cabras; de coisas manchadas e escuras; do que está embaraçado, ligado, e ainda do que trepa. Levantamo-nos da cama de um salto, abrimos a janela, e com que barulho as aves levantam voo! Todos conhecemos aquele súbito bater de asas, aqueles gritos de espanto, canções e confusão; a mistura de vozes; e todas as gotas brilham e tremem, como se o jardim fosse um mosaico composto por muitos fragmentos, sumindo, chispando; sem contudo se ter transformado numa só coisa; e um pássaro canta junto à janela. Escutei essas canções. Segui esses fantasmas. Vi uma série de Joans, Dorothys e Miriams (já não me lembro como se chamavam) descer as avenidas e pararem nos pontos mais altos das pontes para olhar o rio. E de entre elas elevam-se uma ou duas figuras distintas, aves que cantavam junto à janela com o egoísmo próprio da juventude; que quebravam as cascas nas pedras e enterravam os bicos na matéria pegajosa; duras, ávidas, sem possuírem qualquer tipo de remorsos; são elas a Jinny, a Susan e a Rhoda. Penso terem sido educadas ou na costa leste ou no sul. Deixaram crescer o cabelo, prenderam-no em rabos-de-cavalo, e adquiriram o ar de éguas espantadas próprio da adolescência.