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Não pára de fazer caretas e de apontar com gestos semi-idiotas de cobiça e ganância que o caracterizam para tudo o que deseja. Garanto-vos que, por vezes, tenho dificuldade em o controlar. Aquele homem, peludo e semelhante a um macaco, tem dado a sua regular contribuição na minha vida. Deu um brilho ainda mais verde às coisas que já o eram, levantou a sua tocha vermelha e fumarenta por detrás de todas as folhas.

Chegou mesmo a iluminar todo o jardim. Brandiu o archote em algumas vielas sórdidas onde de súbito as raparigas pareciam brilhar com uma transparência avermelhada. Oh, o certo é que elevou bem alto a sua chama! O certo é que me fez entrar em danças selvagens! Mas agora acabou-se. Esta noite o meu corpo ergue-se como se de um templo se tratasse, um templo coberto de tapetes, onde os murmúrios se elevam e o incenso arde nos altares.

Tenho a cabeça recheada de belas melodias e vagas de incenso, isto enquanto a pomba perdida esvoaça, os pendões ondulam por sobre as tumbas, e os ventos escuros da meia-noite fazem as árvores bater contra as janelas. Vistas deste plano transcendente, como são belas as côdeas de pão! Que perfeitas são as espirais produzidas pelas cascas das pêras – de tão finas e sofisticadas, chegam mesmo a lembrar os ovos de uma qualquer ave marinha. Até mesmo os garfos, dispostos lado a lado de forma ordenada, têm uma aparência lúcida, lógica, exacta; e as côdeas que deixamos são duras, lustrosas, amareladas. Seria capaz de adorar a minha própria mão, este leque atravessado por pequenos veios azuis e misteriosos, um instrumento incrivelmente habilidoso, possuidor da capacidade subtil de se curvar com doçura ou de se deixar cair com violência – algo de grande sensibilidade. Receptivo até mais não, tudo guardando, saciado, e, no entanto, tão lúcido, contido – assim é o meu ser agora que o desejo o abandonou; agora que a curiosidade não o tinge de mil e uma cores. Agora que o homem a quem chamavam Bernard morreu, o homem que trazia no bolso uma agenda onde anotava todo o tipo de frases – frases para a Lua, notas a respeito de feições; do modo como as pessoas se viravam e deixavam cair a ponta dos cigarros; a letra B para “pó de borboleta”, a letra M para nomear a morte – este ser está como que esquecido e imune a tudo. Mas agora talvez não seja má ideia deixar que a porta se abra, a porta de vidro que não pára de girar nas dobradiças. Deixem entrar uma mulher, deixem sentar-se um jovem de bigode, vestido a rigor. Poderão eles dizer-me alguma coisa? Não! Já conheço tudo isto. E se ela se levantar de repente e partir, direi: “Minha cara, já não te persigo mais”. O choque provocado pelas ondas quebrando-se contra a praia, o qual toda a vida escutei, deixou de fazer estremecer o que seguro. Agora, depois de ter assumido o mistério das coisas, posso espiar tudo o que me apetece sem ser obrigado a abandonar este lugar, ou mesmo a levantar-me da cadeira. Posso visitar as fronteiras mais remotas dos desertos, onde os selvagens se juntam às fogueiras. O dia vai nascendo; a rapariga eleva as jóias faiscantes à altura da fronte; os raios de sol incidem directamente na casa adormecida; as ondas aprofundam as barras e como que se atiram de encontro à praia; a espuma voa; as águas acabam por rodear o barco e as algas. As aves cantam em coro; cavam-se túneis profundos por entre os caules das flores; a casa adquire uma coloração pálida; o ser adormecido espreguiça-se; aos poucos, tudo se começa a mover. A luz inunda o quarto e faz recuar as sombras até um ponto em que elas se dobram e quase desaparecem. Que estará contido na sombra central? Algo? Coisa nenhuma? Não sei. Oh, mas eis que surge o teu rosto! Eu, que estivera a pensar a meu respeito em termos tão vastos, comparando-me a um templo, a uma igreja, a todo o universo, sem possuir limites e com capacidade para estar no limite das coisas como estou aqui, afinal não passo daquilo que vês – um homem idoso, pesado, de cabelos brancos, que (estou a ver-me ao espelho) apóia o cotovelo na mesa e segura na mão esquerda um copo de brandy velho. Foi então este o golpe que me preparaste?! Acabei por bater contra um poste. Não paro de girar de um lado para o outro. Levo as mãos à cabeça. Estou sem chapéu – deixei cair a bengala. Fiz figuras tristes e agora qualquer um pode troçar de mim. Meu Deus, como a vida é nojenta! Que partidas sujas nos prega, concedendo-nos a liberdade num momento para logo a seguir nos fazer isto! Cá estamos nós de volta às côdeas e aos guardanapos manchados. Aquela faca está cheia de gordura congelada. A desordem, a sordidez e o caos rodeiam-nos.

Temos estado a levar à boca corpos de aves mortas. Somos feitos de pedaços de gordura limpos aos guardanapos, e pequenos cadáveres. Tudo regressa ao ponto de partida; o inimigo está sempre presente; olhos que nos fitam; dedos que nos apertam; o esforço à nossa espera. Chama o criado. Paga a conta. Temos de nos levantar. Temos de encontrar os casacos. Temos de partir. Temos, temos, temos – que palavra detestável. Mais uma vez, eu, que me julgara imune, que dissera: “Agora, estou livre de tudo”, descubro que a onda se abateu contra mim, espalhando tudo o que possuía, deixando-me o trabalho de voltar a juntar e a montar as peças, a reunir forças, a me erguer e a confrontar o inimigo. É estranho como nós, capazes de tanto sofrer, somos capazes de provocar tanto sofrimento. É estranho como o rosto de alguém que mal conheço e que me lembra vagamente uma pessoa que conheci na prancha de embarque de um navio prestes a partir para África – um simples esboço composto por olhos, maçãs do rosto e narinas – tenha poder para me infligir semelhante insulto. Olhas, comes, sorris, aborreces-te, estás satisfeito, perturbado – é tudo o que sei. Porém, esta sombra sentada à minha frente há já uma ou duas horas, esta máscara por onde espreitam dois olhos, tem poder para me fazer recuar, para me fechar num compartimento quente; para me fazer andar de um lado para o outro como uma borboleta por entre as lâmpadas. Mas espera. Espera um pouco enquanto a conta não chega. Agora que já te insultei por me teres desferido um golpe que me fez cambalear por entre cascas, côdeas e bocados de carne, registrarei em palavras de uma sílaba o modo como o teu olhar me faz aperceber disto, daquilo, e de tudo o mais. O relógio faz tiquetaque; a mulher espirra; o criado chega – as coisas vão-se juntando aos poucos, transformando-se num só objecto.

Verifica-se um processo de aceleração e unificação. Escuta: soa um apito, as rodas giram, as dobradiças da porta gemem. Recupero o sentido da complexidade, da realidade e da luta, e devo agradecer-te por isso. E é com alguma pena e inveja, e também com muito boa vontade, que te aperto a mão e te digo adeus. Deus seja louvado por esta solidão! Estou só. Aquele indivíduo quase desconhecido já partiu, talvez tenha ido apanhar um comboio ou um táxi e se dirija agora para um qualquer lugar onde o espera uma pessoa que não conheço. Desapareceu aquela cara que não parava de me olhar. A pressão deixou de se fazer sentir. Aqui só existem chávenas de café vazias e cadeiras onde ninguém se senta. Aqui só existem mesas vazias e ninguém jantará nelas esta noite. Deixem-me entoar o meu cântico de glória. Que o céu seja louvado pela bênção da solidão. Deixem-me estar só. Deixem-me atirar para longe este véu do ser, esta nuvem que muda ao ritmo da respiração, consoante seja dia ou noite e durante todo o dia e toda a noite. Mudei enquanto estive sentado. Vi o céu mudar. Vi as nuvens cobrirem-se de estrelas e libertarem-nas para de novo as cobrirem. Deixei de ver as alterações por elas sofridas. Ninguém me vê e também eu deixei de mudar. Que o céu seja louvado por ter removido a pressão do olhar, a solicitação do corpo, e toda a necessidade de mentiras e frases. O meu bloco-notas, coberto de frases, caiu ao chão. Está debaixo da mesa, pronto a ser varrido pela mulher da limpeza que costuma aqui chegar ao nascer do dia, disposta a varrer todos os pedaços e bolas de papel, velhos bilhetes de eléctrico, e todos os detritos que ficaram na sala. Qual a frase para a Lua? E a frase do amor? Por que nome deveremos chamar a morte? Não sei. Necessito de uma linguagem semelhante à dos amantes, de palavras de uma só sílaba iguais às que as crianças usam quando entram numa sala e encontram a mãe a coser, pegando então num pedaço de lã colorida, numa pena, ou num quadrado de chita. Necessito de um uivo, de um grito. Quando a tempestade atravessa o pântano e me apanha a descoberto na vala onde me encontro, não preciso de palavras nem de nada arrumadinho. Não quero nada que venha do ar e poise no solo com toda a força, não quero nenhuma das ressonâncias e ecos que nos vibram ao longo dos nervos e se transformam em música selvagem e em frases falsas. Estou farto de frases. O silêncio é bem melhor; a chávena de café, a mesa. É bem melhor sentar-me sozinho, como uma gaivota solitária que se empoleira num poste e abre as asas a todo o comprimento.