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Deixem-me ficar aqui para sempre com todos estes objectos nus, esta chávena, esta faca, este garfo, tudo coisas em si mesmas, eu próprio nada mais sendo que eu próprio. Não me venham perturbar com essa história de que está na hora de fechar e partir. De boa vontade vos daria todo o dinheiro que possuo para me deixarem ficar em paz e em silêncio, sozinho, sozinho para sempre. É então que o chefe dos empregados, que só agora acabou de jantar, aparece e franze o sobrolho. Tira o cachecol do bolso, e prepara-se para partir. Todos têm de partir; têm de correr as persianas, dobrar as toalhas e passar a rodilha molhada por baixo das mesas. Malditos sejam! Por muito abatido que esteja, tenho de me levantar, encontrar o casaco que me pertence, enfiar os braços nas mangas, agasalhar-me contra o frio da noite e partir.

Eu, eu, eu, cansado e gasto de tanto esfregar o nariz contra a superfície das coisas, até mesmo eu, um homem velho e gordo, que não gosta de praticar esforços, me vejo forçado a sair e a apanhar o último comboio. Volto a ver a rua do costume. O brilho da civilização como que se gastou. O céu apresenta-se escuro e polido como um osso de baleia. Contudo, há nele uma espécie de luz que tanto pode provir de um candeeiro como do alvorecer. Sinto uma espécie de agitação – algures, numa árvore baixa, os pardais chilreiam. Paira no ar a sensação de que o dia vai nascer. Não lhe chamaria alvorada. Qual o significado de uma alvorada na cidade para um homem velho, parado no meio da rua e a olhar meio tonto para o céu? A alvorada é uma espécie de empalidecer do céu; uma espécie de renovação. Um outro dia, uma outra sexta-feira, um outro vinte de Março, Janeiro ou Setembro. Um outro despertar geral. As estrelas recolhem-se e extinguem-se.

As barras tornam-se mais profundas por sobre as ondas. Um filtro de nevoeiro adensa-se por sobre os campos. O vermelho condensa-se nas rosas, até mesmo naquela bastante pálida, por cima da janela do quarto. Um pássaro chilreia. Os lavradores acendem as primeiras velas. Sim, trata-se do eterno renascer, de uma incessante ascensão e queda. Sinto que até mesmo para mim a onda se eleva. Incha, dobra-se. Tomo consciência de um novo desejo, de qualquer coisa que se ergue em mim como um cavalo orgulhoso, cujo montador esporeou antes de obrigar a parar. Que inimigo vemos avançar em direcção a nós, tu, a quem agora monto enquanto desço este caminho? a morte. É ela o inimigo. É contra a morte que ergo a minha lança e avanço com o cabelo atirado para trás, tal como se este pertencesse a um jovem, ao Percival a galopar na Índia. Esporeio o cavalo. É contra ti que me lanço, resoluto e invencível, Morte!

As ondas quebram-se na praia.