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– O Percival já foi – disse Neville. – Não pensa em mais nada a não ser no jogo. Nunca acena quando a equipa vira a esquina, junto aos loureiros. Despreza-me por ser demasiado fraco para jogar (muito embora a minha fraqueza lhes desperte simpatia). Despreza-me por não me importar com o facto de saber se ganharam ou perderam, mas sim de apenas querer saber daquilo que lhe interessa. Aceita a minha devoção; aceita a minha oferta tremula (sem dúvida que abjecta), muito embora nela se encontre uma certa dose de desprezo pela sua mente. É que ele não sabe ler. Mesmo assim, quando me deito na relva a ler Catulo ou Shakespeare, ele compreende tudo melhor que o Louis. Não me estou a referir às palavras – afinal, que são elas? Não saberei já como rimar, como imitar Pope, Dryden, até mesmo Shakespeare? Contudo, não posso estar todo o dia ao sol a olhar para a bola; não posso sentir os movimentos da bola através do meu corpo e pensar apenas nela. Viverei sempre agarrado aos contornos das palavras. Todavia, seria incapaz de viver com ele e suportar toda a sua estupidez. Por certo que praguejará e ressonará. Acabará por casar e fazer cenas de ternura durante o pequeno-almoço. Mas agora ainda é novo. É como uma folha de papel, e não como uma rede, aquilo que se estende entre ele e o mundo, entre ele e a chuva, entre ele e a lua, quando se deita na cama, o corpo nu e quente. Agora, à medida que sobem o caminho, o seu rosto está manchado de vermelho e amarelo. Acabará por despir o casaco e firmar-se de pernas abertas, as mãos prontas, os olhos postos nos três paus horizontais que se elevam no campo. Os seus lábios murmurarão “Meu Deus faz com que ganhemos”; não pensará em outra coisa para além da vitória.

Como é que alguma vez me poderei juntar a uma equipa de críquete? Só o Bernard o poderia fazer, mas já é tarde demais para isso. Ele chega sempre tarde demais. É a sua incorrigível melancolia que o impede de ir com eles. Quando lava as mãos, pára para dizer: “Está uma mosca naquela teia. Deverei libertá-la? Deverei deixar que a aranha a coma?”. Preocupa-se com um sem-número de insignificâncias. Se assim não fosse, teria ido jogar críquete com eles, e talvez agora estivesse deitado na relva, a olhar o céu, sobressaltando-se ao ouvir o som dos tacos a bater na bola. Mas, e dado que lhes contaria uma história, os outros acabariam por lhe perdoar.

– Já se foram embora – disse Bernard –, e eu atrasei-me demais e já não posso ir com eles. Aqueles rapazinhos horríveis, que também são muito belos, e de quem tu e o Louis, Neville, têm tanta inveja, afastaram-se com as cabeças voltadas na mesma direcção. No entanto, não me apercebo destas diferenças profundas. Os meus dedos percorrem as teclas sem se aperceberem quais as que são brancas e as que são pretas. O Archie não tem qualquer dificuldade em chegar às cem; eu só por sorte consigo fazer quinze. Mas qual a diferença entre nós?

Espera um pouco, Neville, deixa-me falar. As bolhas vão-se elevando como as bolas prateadas que se elevam do fundo de uma frigideira; imagem atrás de imagem. Não me consigo agarrar aos livros com a tenacidade feroz que caracteriza o Louis. Tenho de abrir a portinhola da ratoeira e deixar escapar estas frases ligadas umas às outras, nas quais me movimento. Assim, e em vez de um sistema incoerente, vemos antes uma teia suave, capaz de unir as coisas umas às outras. Vou-te contar a história do professor.

Quando, depois das orações, o Dr. Crane atravessa as portas de vaivém a cambalear, ficamos com a sensação de que ele está convencido da sua superioridade. De facto, Neville, não podemos negar que a sua partida não só nos deixa com uma enorme sensação de alívio mas também com a impressão de que nos tiraram algo, por exemplo, um dente. Vamos então segui-lo até aos seus aposentos. Vamos imaginá-lo no quarto que lhe pertence, por cima dos estábulos, a despir-se. Desaperta os elásticos que lhe podem prender as meias (sejamos triviais, sejamos íntimos). Depois, com um gesto que lhe é peculiar (é difícil evitar estas frases feitas, e, neste caso concreto quando elas até se mostram apropriadas), tira as moedas dos bolsos das calças e coloca-as aos molhos em cima da cômoda. Com os braços apoiados nos braços da cadeira, reflecte (este é o seu momento de privacidade; é aqui que o devemos tentar apanhar): deverá ele atravessar a ponte cor-de-rosa que o leva até ao quarto contíguo, ou não? Os dois quartos estão unidos por uma ponte de luz cor-de-rosa que vem do candeeiro colocado junto a Mrs. Crane que, com a cabeça apoiada na almofada, lê um livro de memórias em francês. Enquanto lê, passa a mão pela testa num gesto de abandono e desespero, e suspira “é tudo?”, comparando-se a uma qualquer duquesa francesa. Só faltam dois anos para me reformar, diz o director. Irei aparar sebes num jardim da zona ocidental do país. Poderia ter sido almirante; talvez mesmo juiz; nunca um professor. Que forças, pergunta, olhando para o fogão a gás com os ombros ainda mais curvados que o costume (não te esqueças de que está em mangas de camisa), me terão transformado nisto? Que forças poderosas, pensa, deixando-se levar pelas frases bombásticas de que tanto gosta, ao mesmo tempo que, por cima do ombro, espreita pela janela. A noite é de tempestade, os ramos da avelaneira não param de andar para baixo e para cima. As estrelas brilham entre eles. Que forças poderosas do bem e do mal me terão trazido até aqui?, pergunta, e, não sem algum desgosto, repara que o pé da cadeira fez um buraco na carpete vermelha. E ali está ele sentado, a abanar os braços. Contudo, são difíceis as histórias que seguem as pessoas até aos seus quartos. Não consigo prosseguir esta história. Estou a brincar com um cordel; viro as quatro ou cinco moedas que tenho no bolso das calças.

– No princípio, as histórias do Bernard divertem-me sempre – disse Neville. – Mas, quando terminam de forma absurda, e ele se cala, a brincar com um qualquer pedaço de cordel, sinto a minha própria solidão. Ele vê todas as coisas com os contornos desmaiados. É por isso que não lhe posso falar do Percival. Não posso expor a minha paixão absurda e violenta à sua simpatia compreensiva. Também ela serviria para fazer uma história. Preciso de alguém cuja mente caia como um machado no seu cepo; para quem o cúmulo do absurdo seja sublime, e considere um simples atacador como algo digno de admiração. A quem poderei desvendar a urgência da minha paixão? O Louis é demasiado frio, demasiado universal. Não há ninguém aqui entre estas arcadas cinzentas, estes tolos que se lamentam, estes jogos e animadas tradições, tudo organizado com grande mestria para que não nos sintamos sós. Porém, vejo-me obrigado a parar enquanto caminho, assaltado por súbitas premonições relacionadas com o que há-de vir Ontem, quando ia a passar o portão do pátio interior, vi o Fenwick levantar o malho. Uma nuvem de vapor elevava-se do bule de chá. Por toda a parte se viam canteiros de flores azuis. Então, de repente, desceu sobre mim o sentido obscuro e místico da adoração, do uno que triunfa sobre o caos. Ninguém adivinhou a necessidade que senti de oferecer o meu ser a um deus e depois perecer, desaparecer. O malho desceu; a visão quebrou-se.

Deverei sair ao encontro das árvores? Deverei abandonar estas salas e bibliotecas? Deverei abandonar as enormes páginas amarelas onde leio Catulo, trocando-as por bosques e campos? Deverei caminhar por entre as faias, ou vaguear ao longo da margem do rio, onde as árvores se unem como amantes? Porém, a natureza é demasiado vegetal, demasiado insípida. Limita-se a possuir água e folhas, vastidão e espaços sublimes. Começo a desejar uma lareira, um pouco de privacidade, e também os membros de outra pessoa.

– Começo a desejar – disse Louis –, que a noite chegue. Enquanto aqui estou, a mão apoiada no painel de carvalho que constitui a porta de Mr. Wickham, imagino que sou um dos amigos de Richelieu, ou mesmo o duque de St. Simon, estendendo ao rei uma caixa de rapé. Trata-se de um privilégio que é só meu. A minha inteligência espalha-se pela corte como fogo. Admiradas, as duquesas despojam-se dos anéis de esmeralda, porém, estes foguetes elevam-se melhor na escuridão da noite, quando estou no quarto. Não passo de um rapaz com um sotaque colonial que bate à porta de Mr. Wickham com os nós dos dedos. O dia revelou-se como algo cheio de triunfos e humilhações que tive de esconder com medo do riso dos outros. Sou o melhor aluno da escola. Mas, quando a noite cai; despojo-me deste corpo insignificante, do meu enorme nariz, dos lábios finos, da pronúncia típica das colônias, e ocupo espaço. Sou, então, o companheiro de Virgílio e Platão. Passo a ser o último descendente de uma das grandes casas da França. Mas sou também aquele que se obriga a abandonar estas paragens desertas e iluminadas pelo luar, estes passeios nocturnos, confrontando-se com portas de carvalho. Acabarei por conseguir, queira Deus que não demore muito, uma qualquer mistura destas duas discrepâncias, tão terrivelmente evidentes para mim. Consegui-lo-ei com o meu sofrimento. Vou bater à porta. Vou entrar.