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Ela sentiu as mãos dele tocando os lados de sua cabeça.

– Relaxe, relaxe – o tom de sua voz estava mais suave. – Em que você está pensando?

Havia sons. E vozes. Só agora ela se dava conta do que estava pensando, embora estivesse com aquilo na cabeça quase um dia inteiro.

– Uma música – respondeu. – Estou cantando sem parar essa música desde que escutei ontem no rádio, quando estávamos vindo para cá.

Sim, ela estava cantando esta música sem cessar, começava e acabava, acabava e começava de novo. Não conseguia tirá-la da cabeça.

Took pediu que ela tornasse a abrir os olhos.

– Esta é a segunda mente – disse. – A que está cantando a música. Podia ser uma preocupação qualquer. Ou, se você estivesse apaixonado, podia ter aí dentro a pessoa com quem gostaria de estar, ou que desejaria esquecer. Mas a segunda mente não é fáciclass="underline" ela trabalha independente de sua vontade. Ele virou-se para Paulo e riu.

– Uma música! Igual à gente, que também vive cheia de músicas na segunda mente! As mulheres deviam estar sempre apaixonadas, e não com músicas na cabeça! Você nunca teve amores aprisionados na “segunda mente”?

Os dois gargalhavam.

– São os piores amores, amores terríveis! – continuou Took, sem conseguir conter o riso. –

Você viaja, tenta esquecer, mas a segunda mente fica o tempo todo dizendo: “ele ia adorar isto!” “Puxa, que bom se ele estivesse aqui!”

Os dois se dobraram de rir. Chris não deu importância à brincadeira. Estava surpresa –

nunca havia parado para pensar nisto.

Tinha duas mentes. Que funcionavam ao mesmo tempo.

Took parara de rir e agora estava ao seu lado.

– Torne a fechar os olhos – disse. – E relembre o horizonte que você estava vendo. Ela tentou imaginar. Mas deu-se conta de que não olhava o horizonte.

– Não consigo – disse de olhos fechados. – Não reparei direito. Sei o que está à minha volta, mas não lembro do horizonte.

– Abra os olhos. E olhe. – Chris olhou. Eram montanhas, rochas, pedras, uma vegetação rasteira e esparsa. E um sol que brilhava cada vez mais forte parecia atravessar seus óculos escuros e queimar seus olhos. – Você está aqui – disse Took com a voz muito séria. – Procure entender que você está aqui, e as coisas que a cercam transformam você – da mesma maneira que você as transforma. Chris fitava o deserto.

– Para penetrar no mundo invisível, desenvolver seus poderes, você tem que viver no presente, aqui e agora. Para viver no presente, tem que controlar a segunda mente. E olhar o horizonte. O rapaz pediu-lhe que se concentrasse na música que, sem querer, estava cantando (era When I fall in love. Não sabia toda a letra, e ficava inventando palavras ou fazendo tum-lara-tum-tum). Chris se concentrou. Em pouco tempo a música desapareceu. Ela agora estava completamente alerta, atenta às palavras de Took.

Mas Took parecia não ter mais nada para dizer.

– Preciso ficar um pouco sozinho agora – disse. – Voltem daqui a dois dias.

Trancaram-se no ar condicionado do quarto do motel, sem ânimo para enfrentar os cinqüenta graus do meio-dia. Nenhum livro, nada interessante. Fazendo hora, tentando dormir e não conseguindo.

– Vamos conhecer o deserto – disse Paulo.

– Está muito quente. Took disse que era perigoso. Vamos deixar para amanhã. Paulo não respondeu. Ela estava certa de que ele tentava transformar o fato de ficar trancado no quarto do motel numa espécie de aprendizado. Tentava dar sentido a tudo que acontecia em sua vida, e falava apenas para descarregar as tensões.

Mas era impossível; tentar dar sentido a tudo era manter-se alerta e tenso o tempo inteiro. Paulo nunca relaxava, e ela perguntou-se quando ficaria cansado daquilo tudo.

– Quem é Took?

– Seu pai é um poderoso mago, e quer manter a tradição na família – assim como os pais engenheiros querem que o filho siga a sua carreira.

– É jovem, e quer se comportar como velho. Está perdendo os melhores anos de sua vida no deserto.

– Tudo tem um preço. Se Took passar por tudo isto – e não desistir da Tradição – vai ser o primeiro de uma série de mestres mais jovens, integrados num mundo que os velhos, embora compreendam, não sabem mais como explicar.

Paulo deitou-se e começou a ler a única coisa disponíveclass="underline" Guia de Alojamentos do Deserto de Mojave. Não queria contar para sua mulher que, além de tudo o que dissera, havia mais uma razão para Took estar ali: era um paranormal poderoso, preparado pela Tradição para agir enquanto as portas do Paraíso estivessem abertas.

Chris queria conversar. Sentia-se angustiada presa num quarto de motel, decidida a não dar

“um sentido a tudo”, como fazia seu marido. Era um ser humano, não estava ali aspirando a um lugar na comunidade dos eleitos.

– Não entendi o que Took me ensinou – insistiu com Paulo. – A solidão e o deserto podem fazer com que a gente tenha um imenso contato com o mundo invisível. Mas acho que nos faz perder o contato com os outros.

– Ele deve ter suas namoradas por aqui – disse Paulo, lembrando-se do “magia e mulheres”

de seu mestre e querendo encerrar a conversa.

“Se tiver que passar mais 39 dias trancada com ele, eu me suicido”, Chris prometeu a si mesma.

À tarde, foram a uma lanchonete que ficava do outro lado da rua. Paulo escolheu uma mesa na janela.

– Quero que você preste bastante atenção nas pessoas que passarem – disse. Pediram sorvetes imensos. Ela ficara várias horas prestando atenção na sua segunda mente, e conseguia controlá-la muito melhor. Seu apetite, porém, sempre fugia a qualquer controle. Fez o que Paulo pediu. Em quase meia hora, apenas cinco pessoas passaram diante da janela.

– O que você viu?

Ela descreveu as pessoas em detalhes – roupas, idade aproximada, o que carregavam. Mas, aparentemente, não era isto que ele desejava saber. Insistiu bastante, tentou arrancar uma resposta melhor, mas não conseguiu.

– Está bem – disse ele no final, dando-se por vencido. – Vou dizer o que queria que reparasse.

“Todas as pessoas que passaram pela rua estavam olhando ligeiramente para baixo.”

Ficaram algum tempo esperando mais uma pessoa passar. Paulo tinha razão.

– Took pediu para você olhar o horizonte. Faça isto.

– O que isso quer dizer?

– Todos nós, homens e animais, criamos uma espécie de “espaço mágico” ao nosso redor. Geralmente é um círculo de cinco metros de raio – e prestamos atenção a tudo que entra ali. Não importa se são pessoas, mesas, telefones ou vitrines: tentando manter o controle deste pequeno mundo que nós mesmos criamos.

“Os magos, porém, olham sempre para longe. Eles ampliam este ‘espaço mágico’, e tentam controlar muito mais coisas. Chamam isto de olhar o horizonte.”

– E por que devo fazer isto?

– Porque você está aqui. Faça e verá como as coisas mudam.

Quando saíram da lanchonete, ela manteve sua atenção nas coisas distantes. Notou as montanhas, as raras nuvens que apareciam apenas quando o sol se punha, e – estranha sensação – parecia estar vendo o ar à sua volta.

– Tudo o que Took falar é importante – disse ele. – Já viu e conversou com seu anjo, e vai usar você para me ensinar. Entretanto, conhece o poder das palavras; sabe que os conselhos que não são ouvidos voltam para quem os deu, e perdem sua energia. Ele precisa ter certeza de que você está interessada no que ele lhe diz.

– Por que não mostra diretamente para você?

– Porque existe uma regra não escrita na Tradição: um mestre jamais ensina ao discípulo de outro mestre. Eu sou discípulo de J.

“Mas ele quer me ajudar. Então está escolhendo você para isto.”

– Foi para isso que você me trouxe?

– Não. Foi porque eu tinha medo de ficar sozinho num deserto.

“Ele podia ter respondido que foi por amor”, pensou ela enquanto passeavam a pé pela cidade. Esta seria a resposta verdadeira.