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Noites e noites o Gato volveu à mesma esquina só para vê-la. Agora tudo o que conseguia em dinheiro era para comprar trajes usados e se pôr elegante. Tinha o dom da elegância malandra, que está mais no jeito de andar, de colocar o chapéu e dar um laço despreocupado na gravata que na roupa propriamente. O Gato desejava Dalva do mesmo modo como desejava comida ao ter fome, como desejava dormir ao ter sono. Já não atendia ao chamado das outras mulheres quando, passada a meia-noite, elas já tinham feito para as despesas do dia seguinte e então queriam o amor juvenil do pequeno malandro. Uma vez foi com uma só para saber da vida de Dalva. Foi assim que se inteirou de que ela tinha um amante, um tocador de flauta num café, que tomava o dinheiro que ela fazia e ainda tomava porres colossais na sua casa, atrapalhando a vida de todas as rameiras do prédio.

O Gato voltava todas as noites. Dalva nunca lhe deu sequer um olhar. Por isso ele ainda a amava mais. Ficava numa espera dolorosa até meia hora depois de meia-noite, quando o flautista chegava e, depois de a beijar na janela, entrava pela porta mal iluminada. Então o Gato ia para o trapiche, a cabeça cheia de pensamentos: se um dia o flautista não viesse... Se o flautista morresse... Era fraco, talvez não agüentasse nem o peso dos quatorze anos do Gato. E apertava a navalha que levava na blusa.

E uma noite o flautista não veio. Nesta noite Dalva andara pelas ruas como uma doida, voltara tarde para casa, não recebera nenhum homem e agora estava ali, postada na janela, apesar de já ter dado as doze horas há muito tempo. Aos poucos a rua foi ficando deserta. Não restaram senão o Gato na esquina e Dalva, que ainda esperava na janela. O Gato sabia que aquela era a sua noite e estava alegre. Dalva desesperava. Então o Gato começou a passear de um lado para o outro da rua até que a mulher o notou e fez um sinal. Ele veio logo, sorrindo.

- Tu não é um frangote que fica na esquina toda noite?

- Quem fica na esquina sou eu. Agora essa coisa de frangote...

Ela sorriu tristemente:

- Tu quer me fazer um favor? Te dou uma coisa - mas logo pensou e fez um gesto. - Não. Tu com certeza tá esperando tua comida e não vai perder tempo.

- Posso, sim. A que estou esperando não vem agora.

- Então eu quero, filhinho, que tu vá na rua Rui Barbosa. O número é 35. Procura seu Gastão. E no primeiro andar. Diz a ele que estou esperando.

O Gato saiu humilhado. Primeiro pensou em não ir e em nunca mais voltar a ver Dalva. Mas depois se decidiu a ir para ver de perto o flautista que tinha coragem de abandonar uma mulher tão bonita. Chegou no prédio um sobrado negro de muitos andares, subiu as escadas, no primeiro andar perguntou a um garoto que dormia no corredor qual era o quarto do Sr. Gastão. O garoto mostrou o último quarto, o Gato bateu na porta. O flautista veio abrir, estava de cuecas e na cama o Gato viu uma mulher magra. Estavam os dois bêbados.

O Gato falou:

- Venho da parte de Dalva.

- Diga àquela bruaca que não me amole. Tou chateado dela até aqui... - e punha a mão aberta na garganta.

De dentro do quarto a mulher falou:

- Quem é esse cocadinha?

- Não te mete - disse o flautista, mas logo acrescentou:

- É um recado da bruaca da Dalva. Tá se pelando que eu volte.

A mulher riu um riso canalha de bêbada:

- Mas tu agora só quer tua Bebezinha, não é? Vem me dar um beijinho, anjo sem asas.

O flautista riu também:

- Tá vendo, pedaço de gente? Diz isso a Dalva.

- Tou vendo um couro espichado ali, sim senhor. Que urubu você arranjou, hein, camarada?

O flautista o olhou muito sério:

- Não fale de minha noiva - e logo:

- Quer tomar um trago? É caninha da boa.

O Gato entrou. A mulher na cama se cobriu. O flautista riu:

- É um filhote somente. Não faz medo.

- Mesmo esse couro - disse o Cato - não me tenta. Nem pra me tocar bronha.

Bebeu a cachaça. O flautista já voltara para a cama e beijava a mulher. Nem viram que o Gato saía e que levava a bolsa da prostituta, que estava esquecida na cadeira, sobre vestidos. Na rua o Gato contou sessenta e oito mil-réis. Jogou a bolsa no pé da escada, meteu o dinheiro no bolso. E foi para rua de Dalva, assoviando.

Dalva o esperava na janela. O Gato olhou para ela fixamente:

- Vou emborcar... - e foi entrando sem esperar resposta.

Dalva, mesmo no corredor, perguntou:

- O que foi que ele disse?

- No quarto te digo. Me mostre onde é.

Entraram no quarto. A primeira coisa que o Gato viu foi um retrato de Gastão tocando flauta, vestido de smoking. Sentou na cama olhando o retrato.

Dalva espiava espantada e mal pôde novamente interrogar:

- O que foi que ele disse?

O Gato respondeu:

- Senta aqui - e indicou a cama.

- Esse frangote... - murmurou ela.

- Olha, bichinha, ele tá grudado com outra, sabe? Também eu disse as boas aos dois. E depois pelei a bruaca - meteu a mão no bolso, tirou o dinheiro. - Vamos rachar isso.

- Tá com outra, não é? Mas meu Senhor do Bonfim há de fazer com que os dois fique entrevado. Senhor do Bonfim é meu santo.

Foi até onde estava o quadro do santo. Fez a promessa e voltou.

- Guarda teu dinheiro. Tu ganhou direito.

O Gato repetiu:

- Senta aqui.

Desta vez ela sentou, ele a pegou e a derrubou na cama. Depois que ela gemeu com o amor e com os tabefes que ele lhe deu, murmurou:

- O frangote parece um homem...

Ele se levantou, endireitou as calças, foi até onde estava o retrato do flautista Gastão e o rasgou.

- Vou tirar um retrato pra tu botar ai.

A mulher riu e disse:

- Vem, bichinho bom. Que malandro não vai sair dai! Vou te ensinar tanta coisa, meu cachorrinho.

Fechou a porta do quarto. O Gato tirou a roupa.

Por isso o Gato sai toda meia-noite e não dorme no trapiche. Só volta pela manhã para ir com os outros para as aventuras do dia.

O Sem-Pernas se aproximou e pilheriou:

- Agora tu vai mostrar o anel, não é?

- Tu não tem nada com isso - o Gato fumava um cigarro. - Tu quer vir pra ver se topa alguma mulher que te queira assim coxo?

- Não vou em casa de couros. Sei onde tem coisas que valha a pena.

Mas o Gato não estava disposto a conversar e o Sem-Pernas continuou a sua peregrinação através do trapiche.

O Sem-Pernas encostou-se junto a uma parede e deixou que o tempo passasse. Viu o Gato sair por volta das onze e meia. Sorriu porque ele havia lavado a cara, posto brilhantina no cabelo e ia marchando com aquele passo gingado que caracteriza os malandros e os marítimos. Depois o Sem-Pernas ficou muito tempo olhando as crianças que dormiam. Ali estavam mais ou menos cinquenta crianças, sem pai, sem mãe, sem mestre. Tinham de si apenas a liberdade de correr as ruas. Levavam vida nem sempre fácil, arranjando o que comer e o que vestir, ora carregando uma mala, ora furtando carteiras e chapéus, ora ameaçando homens, por vezes pedindo esmola. E o grupo era de mais de cem crianças, pois muitas outras não dormiam no trapiche. Se espalhavam nas portas dos arranha-céus, nas pontes, nos barcos virados na areia do Porto da Lenha. Nenhuma delas reclamava. Por vezes morria um de moléstia que ninguém sabia tratar, Quando calhava vir o padre José Pedro, ou a mãe de santo Don'Aninha ou também o Querido-de-Deus, o doente tinha algum remédio. Nunca, porém, era como um menino que tem sua casa. O Sem-Pernas ficava pensando.

E achava que a alegria daquela liberdade era pouca para a desgraça daquela vida.

Voltou-se porque ouviu movimento. Alguém se levantava no meio do casarão. O Sem-Pernas reconheceu o negrinho Barandão, que se dirigia de manso para o areal de fora do trapiche. O Sem-Pernas pensou que ele ia esconder qualquer coisa que furtara e não quem mostrar aos companheiros. E aquilo era um crime conta as Leis dobando. O Sem-Pernas seguiu Barandão, atravessando ente os que dormiam. O negrinho já tinha transposto a porta do trapiche e dava a volta no prédio para o lado esquerdo. Em cima era o céu de estrelas.